O Peido Feliz - Por Jarbas Medeiros

O Peido Feliz
Poucas coisas são, por certo, mais reconfortantes e prazerosas do que um peido. Em geral, o assunto é levado a galhofa, na chacota e no deboche. Coisa de gente sem educação, pessoa inconveniente, sem modos e trato social.Mas é considerado também divertido e engraçado -lembram dos palhacinhos de circo que, com um fole cheio de pó branco adaptado as suas largas e coloridas calças, soltavam puns poeirentos e barulhentos no picadeiro, com grande alegria e gozo de crianças e adultos espectadores?
Mas, fora de contexto, op peido é sempre considerado um assunto vergonhoso, ridículo e vexatório.
Como  a mente humana é muito complexa e difícil, no entanto,muitas vezes se falado peido, sorrindo, nos pequenos círculos íntimos de amigos, sem intenções maldosas,de brincadeira, como se diz. A brincadeira, aí funciona, na verdade, apenas como disfarce e pretexto, como um salvo conduto para driblar a repressão e a censura (injustas) que pesam sobre o assunto. E, curiosamente, mesmo em público, a censura é abolida.Em minha cidade natal, uma pequena cidade do interior mineiro, havia um Zé Peidorreiro ou Zé Peidorra, que assim era tratado por todos, sem malícia ou maldade. E por toda sua vida. E ele aceitava de bom grado o apelido. Algo que deve, certamente, ter adquirido em sua infância ou adolescência e ficado para sempre.Coisas de estigma, por certo.
Eu atribuo a repulsa e o escândalo social ao peido livremente liberado, seja em que lugar for, nas ruas, nos bares e restaurantes, nos escritórios, nas escolas, etc, a cultua em que fomos educados - uma cultura que enaltece e privilegia a repressão (tanto a exterior, que vem de fora, quanto a nossa própria auto repressão, interior), uma cultura que valoriza o medo, a vergonha,a culpa e o sacrifício. algo intrínseco e próprio a nossa cultura judaico-cristã, sob a qual vivemos a milênios. Outra explicação possível, que não exclui a primeira, é a de que a espécie humana, desde que se libertou de sua condição quadrúpede, ou simiesca, enraizou em seu mais profundo inconsciente coletivo uma repulsa ao seu traseiro, a sua bagagem e apetrechos anatômicos anal-excretor, reprodutor, justamente para marcar sua identidade humana, pois que os quadrúpedes, como é facilmente observável, exibem naturalmente sem cerimonia e pudor, e até mesmo com certa garbo e elegância, seus traseiros e órgão genitais correlatos.
Teria sido, pois, para marcar a nossa diferença e identidade humana que nós, homo sapiens sapiens, escondemos e nos envergonhamos publicamente de nossos traseiros e de tudo que lhes diz respeito. Que são, não obstante, os traseiros e seus apetrechos, altamente valorizados por nós no sigilo e na intimidade, sobretudo nas coisas eróticas. Somos humanos porque reprimimos e censuramos, mas também porque desfrutamos e gozamos, no esconderijo. Isso faz sentido?Vista bem do alto e de longe a espécie humana é maluca e bizarra, por essência, complexa e contraditória, acho eu. Incompreensível hoje e para todo o sempre.
Nesse particular, já ouvi mesmo falar de alguns casais ( que não seriam poucos) que só praticam seus atos sexuais peidocando, ou seja, quando devidamente acompanhados e sonorizados por seus próprios peidos simultâneos ou alternados, quanto do homem, quanto da mulher, dos dois parceiros, portanto.
Aqui apenas uma dúvida me inquieta. Quando se lê o Gênese, tudo indica que Adão e Eva, criados 'a imagem de Deus, andavam nus e com certeza peidavam livremente e faziam suas necessidades uns em meio  aos outros, tudo com a inocência e a pureza de seres paradisíacos que eram. No Paraíso, o peido era livre e desinibido. Deduzo então que foi apenas depois com o castigo divino do fruto proibido e da folha de parreira, obrigando os humanos a cobrirem e ocultarem suas vergonhas, (entre elas, o peido), que passamos, todos nós, por castigo, punição e condenação, a ser reprimidos , censurados e culposos, perdendo assim nossa inocência e nossa ingenuidade anteriores. O peido passou a ser proibido, condenável e ridículo, se público ou em comum. Não sei o que dizem o Talmude e o Torá e os sábios rabinos. Mas desconfio que no Paraíso Reconquistado, que certamente graças a Deus está a nossa frente, reconquistaremos o peido livre e a naturlidade inocente de andarmos todos peidando por aí a fora,  - libertos do castigo e da culpa. Estou certo de que vamos nos reconciliar todos com Deus Todo-Poderoso. Seria talvez o que Marx , em outro contexto teórico, anunciava a reconciliação do homem social com o homem natural, da sociedade ccom a natureza -uma promissora utopia da sociedade futura.
O assunto não é ocioso ou desimportante. Personalidades de vulto, como o grande Benjamim Franklin, um dos pais da moderna democracia política - já a sua época, (Século 18) considerado um homem do futuro pela diversidade, extensão, polivalência e pluralidade de sua cultura e vida e também um naturalista, um cientista e um fisiologista - escreveu um correto, douto e inteligente ensaio sobre o peido, atual até nossos dias. A medicina, desde sempre, levou em alta conta, o peido, segundo sua denominação, o  meterorismo, ou seja, a tumefação do ventre devida a acumulação de gases no tubo alimentar, a flatuosidade. Parece que novas pesquisas e estudos, ouvi dizer, se concentram na natureza desses gases, pois, coo se sabe, o conhecimento é sempre progressivo e inovador. São conhecidos os gases - mas a pergunta agora é se, por sua combustão acelerada, são de alguma  forma tóxicos e poluentes do meio ambiente, ou talvez mesmo se, em alta concentração e volumes, poderiam ser letais. Caso isso seja verdadeiro, haverá com certeza, nessa história que hoje percorre o mundo, a necessidade de legislação própria e específica para o peido. Em último caso, poderá mesmo ser utilizado como arma química pelo terrorismo internacional, quem sabe? E,  quanto a nós sempre devemos ter a mão, sobretudo quando no vaso sanitário, uma máscara bucal e nasal antigases, paranos proteger. e respiradouros de peido serão instalados nas ruas e prédios, públicos ou privados, para evitarmos a contaminação geral do povo.
Enfim, enquanto tudo isso acontece, vamos desfrutar e gozar, sigilosamente, ou não, um verdadeiro cardápio de peidos: o peido fininho, o espremido, o grosso, o borrado, o longo, o breve, o brevíssimo, o peido-apito, o assobio, o gemido, o escrachado, o estalado, o chacoalhado, o espiralado, o-que-desce-redondo, o rosquinha, o trombone, o sanfonado, o corneta, o arreganhado, o azedo, o gasoso, o sonoro, o musical, o peido em ré maior, os aéreos, os aquosos, os ígneos, e os luminosos.
Freud dizia que quando não temos condições ou momentos de nos satisfazermos  com os grandes prazeres, devemos nos contentar mesmo com os prazeres menores.
aproveitemos,  todos, pois, o peido feliz.

 Jarbas Medeiros é cientista político.
 Fonte: Revista CAROS AMIGOS, NOV. 2003

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