Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel I (11 páginas de 41)

 



CARTA AO REI DOM MANUEL I

Senhor:

Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a

Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se

achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu

melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.

Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo

que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque

o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de

falar começo e digo:

A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado,

14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da

Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro

léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista

das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar,

piloto.

Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde

com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o

capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das

Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670

léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita

quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras

a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a

que chamam fura-buxos.

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande

monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com

grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a

Terra da Vera Cruz.

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis

léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali

permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos

em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze,

catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos

âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez

horas pouco mais ou menos.

Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo

disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.

Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a

esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.

E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E

tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando

aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte

homens.

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas

mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho

lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na

costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um

deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas

vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal

grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças

creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e

não poder haver deles mais fala, por causa do mar.

Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e

especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por

conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da

costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se

achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e

lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.

Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta

ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou

o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem

pouso seguro para as naus, que amainassem.

E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado

ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e

muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus

arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma

légua do recife, e ancoraram em onze braças.

E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado

do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o

porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que

estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia

andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já

de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons

narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de

mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos

traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de

comprimento

duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um

furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e

os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta,

nem os estorva no falar, no comer ou no beber.

Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de

sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por

baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave

amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria

o toutiço

e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda

como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e

mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com

um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de

Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com

ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não

fizeram

sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho

no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar,

como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e

assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também

houvesse prata.

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na

mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um

carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não

lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados.

Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram

fora.

Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem

quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram

na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito

com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a

terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro

por aquilo.

Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que

levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho

havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.

Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de

cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem

rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da

cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles

consentiram, quedaram-se e dormiram.

Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a

qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e

ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão

segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus

quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou

o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles

dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um

sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que

eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá

ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para

lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com

Nicolau Coelho.

Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens,

todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que

se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito.

E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado comeles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a

quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que

lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio,

entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o

degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas

logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já

nus e sem carapuças.

Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis,

até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós

levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos

chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e

pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a

uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase

nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de

linho ou

por qualquer coisa que homem lhes queria dar.

Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.

Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de

osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos

uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles

bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores,

a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de

azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro

moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, esuas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as

muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser

tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.

Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram

três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que

nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que

tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com

eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao

senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo.

Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele

tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós

trouxemo-lo.

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas,

pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças

de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era

toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e

sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra,

vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era

fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.

À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros

capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu

em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu

-- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui

vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não

ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns

marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então

volvemo-nos às naus, já bem de noite.

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e

pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e

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