Um velho entrevado, torto, de 73 anos, tossindo, mal vestido, deve
estar muito doente. Só os olhos são ágeis como os olhos de um menino:
correm em torno da mesa, encara rapidamente as pessoas para depois se
fixar na janela à esquerda, na porta aberta à direita; os olhos de
Zabelê, mais de 40 anos depois, conservam a vigilância dos tempos do
cangaço. E como se, a qualquer momento, um macaco fosse pular à sua
frente ou às suas costas para enchê-lo de bala.
Zabelê, ou Isaias
Vieira, um homem totalmente apavorado. É um exemplo dos cangaceiros
que, depois da luta, ficaram por aqui mesmo, no Nordeste. Há muitos em
todo o sertão, de Alagoas ao Ceará, todos escondidos sob nomes falsos. E
eles sabem que não temem fantasmas. A vingança, no sertão, é elaborada
com paciência chinesa. É possível, perfeitamente possível que, a
qualquer momento, amanhã talvez, um outro velho entrevado descarregue
seu revólver sobre o velho Zabelê. Afinal, Zabelê nem sabe quantos matou
em um ano de cangaço. Era coiteiro de Lampião desde 1923, na região do
Pajeú, até que o coito se tornou evidente demais, e perigoso. Olhando de
um lado para outro enquanto fala, o velho conta:
- Lampião:
tá descoberto que eu compro coisinha procê. Tô enroscado. Se não sentá
praça vou acabar entre as pernas do tenente.
Lampião pensou um pouco. Não era qualquer coiteiro que podia “sentar praça” no cangaço. Zabelê insistiu:
- Tô desmantelado. Sou pai de família, tó desmantelado.
-Desmantelado você já nasceu.
E dito isso, Lampião aceitava um novo “soldado”. Porque era preciso
estar mesmo muito “desmantelado” na vida para topar a parada. Zabelê
tinha mulher, quatro filhos e muito azar. Começou a brigar em 1926 e um
ano depois estava preso. Participou de um combate importante, o de Serra
Grande, naquele mesmo sertão. Como todo ex-cangaceiro, diz que, naquela
batalha, morreram uns 30 macacos. Cangaceiro, nenhum. O mesmo truque
usado pelos policiais da época. Vários dizem que em Serra Grande
morreram um ou dois soldados. O coronel Higino José Belarmino, famoso
entre outras coisas por não mentir, nem que a verdade possa “prejudicar”
a imagem da Volante, diz que morreram dez soldados em Serra Grande.
Cangaceiros, ele não sabe, ninguém sabe.
Os cangaceiros sempre
carregavam os seus mortos e feridos e os eternizavam, batizando um cabra
novo com o nome do preso ou do morto: assim, este que apavorado
conversa com a gente, é o primeiro Zabelê de uma série. Um toque de
misticismo, nem tanto para confundir a polícia, mas o povo. O cangaceiro
não morre. Zabelê está preso? Como, olha ele aqui.
zabele, coiteiro de Lampiao2
Fotografia de 29/12/29 do cangaceiro Zabelê preso.
(Foto: Arquivo de Kiko Monteiro)
Apesar do pavor, Zabelê ainda ousa revelar, com seu raciocínio lógico
de sertanejo, que tudo não se resume a troca de tiros entre grupos ou
requintes de crueldade. Até Zabelê, personagem de mínima importância
dentro daquela fase da História do Brasil, sabe o que significa
corrupção. “Todo mundo ajeitava. O senhor pode ser naquela época o
presidente da nação, ajeitava também. Naquela época só quem não ajeitava
era Deus que não aparecia”.
Ele quer dizer que grande parte das
armas do cangaço foi vendida pela própria polícia que importantes
políticos da época, hoje venerandos e com estátua (algumas equestres) no
meio das praças, estiveram envolvidos gravemente, pairando sua honra
sobre os tiroteios que eles próprios manipulavam.
Zabelê: apavorado, velho, doente, pobre e atualizadíssimo.
¹ O cangaceiro Zabelê, nasceu Isaias Vieira dos Santos, em 20/10/1896
na Fazenda Xique-Xique, em Serra Talhada (PE). De inicio ele era
coiteiro de Lampião, depois do celebre combate em sua fazenda em
12/11/1925, entre a Força Volante e Lampião, Isaias Vieira entrou no
bando onde participou de alguns combates (Serra Grande, em Serra Talhada
e Fazenda Tapera do Gilo, em Floresta) até – aconselhado por parentes e
amigos – se entregou em Serra Talhada no inicio de 1927 pegando 90
anos de prisão. Quinze anos depois (1942), foi libertado da Casa de
Detenção do Recife. Casou com dona Maria Benedita de Lima e tiveram 5
filhos: 1- Manuel Vieira (Neco Véio); 2- Cecilia Vieira; 3- Jovina
Vitorino (Nega); 4- Benedito Vieira e 5- Joaquim Vieira. O cangaceiro
Zabelê, faleceu em 10/02/1978, há exatos 36 anos.
Fotografia do já idoso cangaceiro Zabelê que ilustra a matéria do jornal.
Um velho entrevado, torto, de 73 anos, tossindo, mal vestido, deve
estar muito doente. Só os olhos são ágeis como os olhos de um menino:
correm em torno da mesa, encara rapidamente as pessoas para depois se
fixar na janela à esquerda, na porta aberta à direita; os olhos de
Zabelê, mais de 40 anos depois, conservam a vigilância dos tempos do
cangaço. E como se, a qualquer momento, um macaco fosse pular à sua
frente ou às suas costas para enchê-lo de bala.
Zabelê, ou Isaias Vieira, um homem totalmente apavorado. É um exemplo dos cangaceiros que, depois da luta, ficaram por aqui mesmo, no Nordeste. Há muitos em todo o sertão, de Alagoas ao Ceará, todos escondidos sob nomes falsos. E eles sabem que não temem fantasmas. A vingança, no sertão, é elaborada com paciência chinesa. É possível, perfeitamente possível que, a qualquer momento, amanhã talvez, um outro velho entrevado descarregue seu revólver sobre o velho Zabelê. Afinal, Zabelê nem sabe quantos matou em um ano de cangaço. Era coiteiro de Lampião desde 1923, na região do Pajeú, até que o coito se tornou evidente demais, e perigoso. Olhando de um lado para outro enquanto fala, o velho conta:
- Lampião: tá descoberto que eu compro coisinha procê. Tô enroscado. Se não sentá praça vou acabar entre as pernas do tenente.
Lampião pensou um pouco. Não era qualquer coiteiro que podia “sentar praça” no cangaço. Zabelê insistiu:
- Tô desmantelado. Sou pai de família, tó desmantelado.
-Desmantelado você já nasceu.
E dito isso, Lampião aceitava um novo “soldado”. Porque era preciso estar mesmo muito “desmantelado” na vida para topar a parada. Zabelê tinha mulher, quatro filhos e muito azar. Começou a brigar em 1926 e um ano depois estava preso. Participou de um combate importante, o de Serra Grande, naquele mesmo sertão. Como todo ex-cangaceiro, diz que, naquela batalha, morreram uns 30 macacos. Cangaceiro, nenhum. O mesmo truque usado pelos policiais da época. Vários dizem que em Serra Grande morreram um ou dois soldados. O coronel Higino José Belarmino, famoso entre outras coisas por não mentir, nem que a verdade possa “prejudicar” a imagem da Volante, diz que morreram dez soldados em Serra Grande. Cangaceiros, ele não sabe, ninguém sabe.
Os cangaceiros sempre carregavam os seus mortos e feridos e os eternizavam, batizando um cabra novo com o nome do preso ou do morto: assim, este que apavorado conversa com a gente, é o primeiro Zabelê de uma série. Um toque de misticismo, nem tanto para confundir a polícia, mas o povo. O cangaceiro não morre. Zabelê está preso? Como, olha ele aqui.
zabele, coiteiro de Lampiao2
Fotografia de 29/12/29 do cangaceiro Zabelê preso.
(Foto: Arquivo de Kiko Monteiro)
Apesar do pavor, Zabelê ainda ousa revelar, com seu raciocínio lógico de sertanejo, que tudo não se resume a troca de tiros entre grupos ou requintes de crueldade. Até Zabelê, personagem de mínima importância dentro daquela fase da História do Brasil, sabe o que significa corrupção. “Todo mundo ajeitava. O senhor pode ser naquela época o presidente da nação, ajeitava também. Naquela época só quem não ajeitava era Deus que não aparecia”.
Ele quer dizer que grande parte das armas do cangaço foi vendida pela própria polícia que importantes políticos da época, hoje venerandos e com estátua (algumas equestres) no meio das praças, estiveram envolvidos gravemente, pairando sua honra sobre os tiroteios que eles próprios manipulavam.
Zabelê: apavorado, velho, doente, pobre e atualizadíssimo.
¹ O cangaceiro Zabelê, nasceu Isaias Vieira dos Santos, em 20/10/1896 na Fazenda Xique-Xique, em Serra Talhada (PE). De inicio ele era coiteiro de Lampião, depois do celebre combate em sua fazenda em 12/11/1925, entre a Força Volante e Lampião, Isaias Vieira entrou no bando onde participou de alguns combates (Serra Grande, em Serra Talhada e Fazenda Tapera do Gilo, em Floresta) até – aconselhado por parentes e amigos – se entregou em Serra Talhada no inicio de 1927 pegando 90 anos de prisão. Quinze anos depois (1942), foi libertado da Casa de Detenção do Recife. Casou com dona Maria Benedita de Lima e tiveram 5 filhos: 1- Manuel Vieira (Neco Véio); 2- Cecilia Vieira; 3- Jovina Vitorino (Nega); 4- Benedito Vieira e 5- Joaquim Vieira. O cangaceiro Zabelê, faleceu em 10/02/1978, há exatos 36 anos.
Zabelê, ou Isaias Vieira, um homem totalmente apavorado. É um exemplo dos cangaceiros que, depois da luta, ficaram por aqui mesmo, no Nordeste. Há muitos em todo o sertão, de Alagoas ao Ceará, todos escondidos sob nomes falsos. E eles sabem que não temem fantasmas. A vingança, no sertão, é elaborada com paciência chinesa. É possível, perfeitamente possível que, a qualquer momento, amanhã talvez, um outro velho entrevado descarregue seu revólver sobre o velho Zabelê. Afinal, Zabelê nem sabe quantos matou em um ano de cangaço. Era coiteiro de Lampião desde 1923, na região do Pajeú, até que o coito se tornou evidente demais, e perigoso. Olhando de um lado para outro enquanto fala, o velho conta:
- Lampião: tá descoberto que eu compro coisinha procê. Tô enroscado. Se não sentá praça vou acabar entre as pernas do tenente.
Lampião pensou um pouco. Não era qualquer coiteiro que podia “sentar praça” no cangaço. Zabelê insistiu:
- Tô desmantelado. Sou pai de família, tó desmantelado.
-Desmantelado você já nasceu.
E dito isso, Lampião aceitava um novo “soldado”. Porque era preciso estar mesmo muito “desmantelado” na vida para topar a parada. Zabelê tinha mulher, quatro filhos e muito azar. Começou a brigar em 1926 e um ano depois estava preso. Participou de um combate importante, o de Serra Grande, naquele mesmo sertão. Como todo ex-cangaceiro, diz que, naquela batalha, morreram uns 30 macacos. Cangaceiro, nenhum. O mesmo truque usado pelos policiais da época. Vários dizem que em Serra Grande morreram um ou dois soldados. O coronel Higino José Belarmino, famoso entre outras coisas por não mentir, nem que a verdade possa “prejudicar” a imagem da Volante, diz que morreram dez soldados em Serra Grande. Cangaceiros, ele não sabe, ninguém sabe.
Os cangaceiros sempre carregavam os seus mortos e feridos e os eternizavam, batizando um cabra novo com o nome do preso ou do morto: assim, este que apavorado conversa com a gente, é o primeiro Zabelê de uma série. Um toque de misticismo, nem tanto para confundir a polícia, mas o povo. O cangaceiro não morre. Zabelê está preso? Como, olha ele aqui.
zabele, coiteiro de Lampiao2
Fotografia de 29/12/29 do cangaceiro Zabelê preso.
(Foto: Arquivo de Kiko Monteiro)
Apesar do pavor, Zabelê ainda ousa revelar, com seu raciocínio lógico de sertanejo, que tudo não se resume a troca de tiros entre grupos ou requintes de crueldade. Até Zabelê, personagem de mínima importância dentro daquela fase da História do Brasil, sabe o que significa corrupção. “Todo mundo ajeitava. O senhor pode ser naquela época o presidente da nação, ajeitava também. Naquela época só quem não ajeitava era Deus que não aparecia”.
Ele quer dizer que grande parte das armas do cangaço foi vendida pela própria polícia que importantes políticos da época, hoje venerandos e com estátua (algumas equestres) no meio das praças, estiveram envolvidos gravemente, pairando sua honra sobre os tiroteios que eles próprios manipulavam.
Zabelê: apavorado, velho, doente, pobre e atualizadíssimo.
¹ O cangaceiro Zabelê, nasceu Isaias Vieira dos Santos, em 20/10/1896 na Fazenda Xique-Xique, em Serra Talhada (PE). De inicio ele era coiteiro de Lampião, depois do celebre combate em sua fazenda em 12/11/1925, entre a Força Volante e Lampião, Isaias Vieira entrou no bando onde participou de alguns combates (Serra Grande, em Serra Talhada e Fazenda Tapera do Gilo, em Floresta) até – aconselhado por parentes e amigos – se entregou em Serra Talhada no inicio de 1927 pegando 90 anos de prisão. Quinze anos depois (1942), foi libertado da Casa de Detenção do Recife. Casou com dona Maria Benedita de Lima e tiveram 5 filhos: 1- Manuel Vieira (Neco Véio); 2- Cecilia Vieira; 3- Jovina Vitorino (Nega); 4- Benedito Vieira e 5- Joaquim Vieira. O cangaceiro Zabelê, faleceu em 10/02/1978, há exatos 36 anos.
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