O PADRE CÍCERO EM ROMA ( PARTE FINAL) -POR LAILSON GURGEL FEITOSA

...Suas sensibilidades afloravam como se estivesse vendo os martírios, como se estivesse socorrendo seus filhinhos da seca feroz no sertão nordestino.
[...]
[...] Dai segui para a Praça Minerva onde demorei um pouquinho. Continuei passando no antigo templo da deusa Vesta (Foto 5),
 aquele mesmo onde estava aquela Santa Márcia, cuja vida nós lemos aí, Idália sabe. Entrei no templo que hoje é consagrado a S.S Virgem, encaminhei-me para rua do Coliseu, passei ao pé desta imensa montanha de construção humana cujo solo foi embebecido pelo sangue de muitos milhares de mártires.” (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105)

No trecho seguinte sente-se a essência humanista de Padre Cícero, seu pesar e dor por aqueles que sofreram até a morte no Coliseu Romano (Foto 6). Padre Cícero externa seu sentimento clerical, vocacional de quem se compadece com o sofrimento alheio, das agruras da vida, dos desviados, da mesma forma como se sentia em seu torrão natal durante os flagelos das secas, do banditismo rural e dos desvalidos de terra. “[...] Coloquei-me pensando que aqueles por amor de Nosso Senhor tinham sofrido até a morte e eu, se não tinha sofrido a morte, minha alma, por amor de Nosso Senhor, passava por angustias como as de quem morreu”.

Devocionado e fiel a sua fé e a Igreja Católica Apostólica Romana, Padre Cícero não fez turismo em Roma, ocioso em terras distantes, preocupado e esperando por dias intermináveis pela sua audiência com os inquisitores e com o próprio papa Leão XIII, que cuidavam de seu processo.
Para amenizar seus sofrimentos, angustias e preocupações Padre Cícero fez dos lugares da Cidade Eterna um campo de aprofundamento de seus conhecimentos históricos e religiosos, principalmente. Esta foi à forma encontrada para suportar as saudades, e a tensão sobre o seu caso perante o sumo pontífice.

Diante de tudo, temos a áurea de um homem digno de seus atos, respeitador, inteligente e honesto.
Padre Cícero, na mesma carta, cita que se dirigiu ao Circo Máximo, outro antigo palco de extermínio de cristãos, no corpo da missiva, o sacerdote eleva seus conhecimentos, dando ao amigo, destinatário das informações, os pormenores dos lugares e dos edifícios históricos.
O percurso, longo, não cansava o nosso padre sertanejo, sedento de fé, humanismo e zeloso pelos patrimônios históricos. Padre Cícero se manifesta como um entusiasta da cultura. Assim, continua a descrição de sua caminhada por Roma: “[...] Passei no Circo Máximo (Fotos 7 e 8, acima), mandado construir por Tarquínio Prisco, restaurado por Vespasiano, acrescentado por outros imperadores e que comportava até quatrocentos mil espectadores;
Foto 6. Coliseu Romano, Roma, Itália.
Foto 7. Circo Máximo, Roma, Itália.
Foto 8. Circo Máximo, Roma, Itália.



passei a porta de São Lourenço (Foto 9), e já fora dos muros procurei a Via Apia (Foto 10), a maior das que tinham construída os antigos romanos por ordem de Appius Claudius, ornada de muitos monumentos, cujas ruinas ainda atestam a sua grandeza. Desviei-me numa pequena distância enquanto ia as termas do Caracala (Foto 11 e 12), que eram, meu amigo, uma coisa tão enorme que a gente se admira só das ruinas; tinham uma légua e tudo com tanta magnificência que eram uma das maravilhas de Roma”. (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105)
As fotos atuais, inclusas neste estudo, atestam muito bem os registros de Padre Cícero durante sua estadia em Roma, pois os locais por ele visitados permanecem preservados e não por menos, fazendo jus ao seu codinome de Cidade Eterna.
Em Caracala, Padre Cícero fica encantado com as dimensões do edifício e sua engenhosidade. A fiel descrição do ambiente dá ao leitor, ou certamente deram ao então amigo Segundo, residente na tão distante Crato, ou não, as mesmas sensações de estar naquele magnífico lugar. Padre Cícero nos encanta com seu jeito de escrever, dando ao seu amigo dados realistas para que o mesmo se sentisse em Roma e Cícero afagado pelo seu.
Foto 9. Basílica de São Lourenço, Roma, Itália.
Foto 10. Via Apia, Roma, Itália.
Foto 11. Termas de Caracala, Roma, Itália.
Foto 12. Termas de Caracala, Roma, Itália.


Os passeios por Roma faziam muito bem ao Padre Cícero, sentia-se feliz, raros momentos de trégua em suas preocupações. Era o encontro dele com a sua vocação, in lócus.
Continuando as visitações, e concomitante a Via Apia, Padre Cícero se defronta com a maravilhosa impressão numa rocha deixada por Jesus Cristo após o mesmo aparecer para Pedro, seu apóstolo. Entusiasmado com a visão descreve o fato ao seu prior amigo, ato singelo, e, religiosamente compromissado com o sagrado e com seu devotado amigo. “[...] Voltei e tomei outra vez a Via Ápia, entrei em seguida na pequena Igreja onde Nosso Senhor apareceu a São Pedro, quando este ia fugindo de Roma, mostraram-me a pedra onde Nosso Senhor esteve em pé e deixou impresso os dois rastos [...] aí ajoelhei-me e rezei a Nosso Senhor para que nos desse paz, e creia que me lembrei de você”. (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105)
Em outro momento Padre Cícero quer dá ao seu dileto conterrâneo um gesto de proximidade em terras longínquas, pois o ato de colher uma flor no sítio histórico e remetê-la significa ter e sentir a presença de um ente querido ao seu lado. Padre Cícero quer provir seu amigo Segundo com sensações e emoções sobre seus dias na distante Roma. Vejamos o que escreve Padre Cícero na missiva: “[...] Depois estive um pouquinho de tempo no sepulcro dos Cipões (Foto 13) que eram um monumento de três ordens com um vasto subterrâneo dentro de um monte; [...] Como testemunha tirei esta flor que vai aqui dentro; é perto do Arco Druso (Foto 14), construído em sua honra pelo Senado, em memória perpétua de suas vitórias contra os germanos”. (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105)
Todo o percurso descrito nesta carta Padre Cícero esteve acompanhado pelo seu companheiro de viagem o padre João David, este, ao enviar comunicados aos seus familiares relata algumas dificuldades encontradas em Roma. No livro PADRE CÍCERO: PODER, FÉ E GUERRA NO SERTÃO, de autoria do jornalista LIRA NETO, há alguns pormenores daqueles dias difíceis para o Padre João David e Padre Cícero. “[...] Este escrevera para a família no Cariri para contar que, não bastasse a friagem insuportável da Europa, ele também sofria por não entender nada do que lhe diziam, do mesmo modo que não se fazia entender por absolutamente ninguém. Quando
Foto 13. Sepulcro do Cipões, Roma, Itália.
Foto 14. Arco de Druso, Roma, Itália.
por ventura precisava tratar com algum italiano, David prosseguia a fazer uso de um repertório particular de mimicas. Em algumas situações, segundo admitiu aos parentes, até se fez de surdo-mudo para melhor passar quando lhe dirigiam a palavra”. (NETO, 2009, p. 246)
Contudo, os levitas receberam a visita do clérigo Fernandes da Silva Távora, logo no primeiro dia da chegada de ambos em Roma. Apesar do carisma e de sua disponibilidade para leva-los aos lugares históricos da Cidade Eterna, o mesmo mantinha a diocese de Fortaleza informada sobre os passos de Padre Cícero, sobre isto Lira Neto é contumaz: “Em contrapartida, mal terminado o passeio, Fernandes fez saber ao bispo do Ceará que Cícero se encontrava em Roma” (NETO, 2009, p. 256).
Em uma carta dirigida ao seu irmão padre Carloto Távora, o referido faz saber do envio de comunicados a cúria de Fortaleza sobre a estadia de Padre Cícero em Roma, e o mais estarrecedor é o seu desdém contra Padre Cícero, ora mantendo a cúria informada ora desdenhando das intenções do reverendo do Sertão.
“Escrevi a Dom Joaquim para dar-lhe a necessária guia desta viagem ele escreveu-me dizendo que Cícero não se comunicava mais com ele. Afinal, diz que deseja que volte desenganado de sua teimosia” (NETO, 2009, 246)
O mesmo autor mencionam as indigestas intenções de Padre Fernandes contra o Padre Cícero e denotando pouca assistência aos viajantes, principalmente ao Padre Cícero.
Padre Fernandes, justifica a não continua assistência a seu compatriota em virtude seus estudos dando esta responsabilidade ao amigo Padre Antônio Versiane de Figueiredo Murta, que também estava em temporada de estudos na Itália. Compreensível justificativa, porém é notório o escárnio e ironia contra o Padre Cícero ao citar Padre Versiane Murta enfadado devido à parcimônia de Cicero em Roma, surpresos, por nunca terem visto tão sublime devoção e compromisso a sua fé católica.
“Encarreguei Murta de visitar com Cícero toda a Roma. Mas ele não aguentou mais de dois dias. Em cada altar das 365 igrejas da cidade, Cícero queria rezar meia hora”. Padre Fernandez foi inconsequente ao tratar com desdém seu confrade e compatriota, desdenhando-o. Em contrapartida Padre Cícero sempre humilde e fiel, lhe trouxe saborosos doces de buriti, famosos doces do Cariri. Generosidade típica do nordestino, assim diz Padre Fernandes na correspondência: “Ele trouxe-me belíssimo roquete e uma lata de doce de buriti” (NETO, 2009, p. 248)
Percebe-se o quanto a perseguição contra o clérigo sertanejo era implacável, mas, sem saber das injurias de seu guia em Roma, Padre Cícero o caracterizava com zelo e esmero como sempre fez ao seu semelhante.
Seus passeios foram muito importantes para superar as saudades dos seus, principalmente de mãe que se encontrava idosa e doente. No palco dos acontecimentos históricos Padre Cícero se mostrava ainda mais religioso.
“[...] Passamos e fomos a Basílica de São Sebastião (Foto 14), erigida no cemitério de São Calixto (Foto 15), no mesmo lugar onde Santa Luciana, matrona romana, sepultou o corpo de São Sebastião. Perto se vê o sepulcro de Cecília Metela (Foto 16), na continuação da Via Apia, que segue até Cápua (Foto 17)”. (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105). Nesses trechos os caminhos percorridos. Seu desejo era dar ao seu amigo as suas experiências e sensações, algo proferido por quem tem complacência, sensibilidade e fraternidade.
Padre Cícero descreve tudo com muito rigor e realismo, em seus dizeres a exaltação de sua fidelidade à fé cristã, as minúcias de suas palavras completam e desmistificam qualquer índole pervertida que muitos escritores o exortam. Suas expressões são irmanadas e carregadas de emoções humanistas e racionais.
Ao entrarem na Basílica de São Sebastião, Padre Cícero especifica ao seu interlocutor que tal edifício é anexo ao cemitério de São Calixto, isso redunda em cuidado, para situa-lo no espaço, nobreza de quem escreve com carinho.
Rico e esplendido são seus gestos no interior dos labirintos do subterrâneo de Roma. Espaços construídos para o culto cristão em um tempo de perseguições e mortes aos disseminadores do cristianismo. Padre Cícero se
Foto 14. Basílica de São Sebastião, Roma, Italia.
Foto 15. Cemitério de São Calixto, Roma, Italia.
Foto 16. Sepulcro de Cecília Metela, Roma, Italia.
Foto 17. Cápua, Roma, Italia.
alenta se comove e as dores da clandestinidade, que oprime, e da morte, por defender as palavras de Deus.
“Entramos na Basílica [...]. Unido à igreja está o convento dos franciscanos que zelam a basílica e as catacumbas, pela qual é concedida a indulgência plenária, visitamos os altares, particularmente a capela e o altar onde está a estátua de São Sebastião (Foto 18). [...] Que recordações tão agradáveis tive eu! Vimos um antigo sacrário de pedra daquele tempo, andamos por aqueles corredores estreitos, em que está colocada aquela imensidade de sepulturas de mártires e de cristãos que ali se refugiavam, ocultos ali em busca do céu. [...] Creia-me que, quando estava naquela solidão, entre aqueles fradinhos tão humildes e tão poucos, sem terem outra ocupação senão Deus, esquecidos do mundo e em tanta paz, tive vontade também ali, porque bem me parece que é uma porta de céu aquele repouso de tantos milheiros de mártires e de bem-aventurados que já estão gozando de Deus e esperam seus corpos e ossos ali pelo grande dia do juízo para glorificarem a Deus por sua fé. Vi lá caveiras, canelas, braços, dos quais com toda a certeza hei de ver seus donos cheios de vida, sendo felizes (Foto 19 e 20). Meu amigo, realmente aquilo convida ficar-se ali em companhias tão santas. [...] Pedi qualquer coisa que servisse de memória. Eram talvez cinco da tarde e voltei para o albergue a pensar em tudo daí, só desejando e pedindo a Deus que, como não posso ficar, me leve logo em paz, que muito duvido me deixem gozar. (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105)
Foto 18. Estátua de S. Sebastião no altar da basílica, Roma, Itália.
Foto 19. Catacumbas nos subterrâneos da do convento dos Franciscanos, Roma, Itália.
Na mesma carta escrita, março de 1898, Padre Cícero Romão Batista discorre a pena para sua mãe numa carta cheia de emoções decorrentes dos lugares por ele visitados, transparecendo para Dona Quinô o belo sentimento cristão de seu filho dedicado, uma revelação de sua vocação ao sacerdócio. Contudo, transcrevo parte desta missiva. “ Roma, 24 de março de 1898 [...] Já tenho visitado a maior parte dos santuários mais célebres daqui, mas nenhum há que me tocasse tanto na alma como a Escada Santa (Foto 21); a mesma por onde Jesus Cristo, para o Palácio de Pilatos, subiu em dolorosas paixão, caindo gostas de seu sangue nos degraus que ainda hoje se conservam e se adoram. [...] Sobe-se de joelhos até em cima, onde está o santuário cheio de preciosas relíquias; sobe-se rezando; e eu impressionado como se estivesse vendo Nosso Senhor subindo e eu acompanhando; a Santíssima Virgem cheia da maior mágoa; ai pedi muito a Ela e Ele que tanto quis sofrer por amor a nós, por minha mãe, por Angélica, por cada um de vocês e por todos dai.” (SOBREIRA, Op. cit, p. 101/105)
Foto 20. Catacumbas nos subterrâneos da do convento dos Franciscanos, Roma, Itália.
Foto 21. Escada Santa, Vaticano, Itália.
Grande ministério de Cícero em Roma, devotado de fé e amor a sua religião, esse humilde sertanejo percorreu a cidade de Roma e dentro dela foi sentindo o peso de suas acusações dentro da própria história e ascensão do catolicismo.
Os edifícios e os mártires, os apóstolos São Pedro e São Paulo, os santos e os mártires sepultados em catacumbas subterrâneas. Nesses lugares Cícero se lembrava de seus romeiros, perseguidos e famintos, ao desdém das autoridades. Mas, se fez forte e objetivado, Roma garantiu sua fortaleza, os prédios monumentais o impulsionaram a continuação de seu ministério terreno no lugar chamado Joazeiro.

BIBLIOGRAFIA
1. SOBREIRA, Azarias. O Patriarca de Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1968.
2. PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edições UFC, 2010.
3. O Padre Cícero por ele mesmo / organizadoras, Therezinha Stella Guimarães, Anne Dumoulin. – Fortaleza: INESP, 2015.
4. Neto, Lira. Padre Cícero : poder, fé e guerra no sertão / Lira Neto – São Paulo : Companhia das Letras, 2009.
5. Della Cava, Ralph. Milagre em Juazeiro; tradução de Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976

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