DESAPEGO E TRANSFORMAÇÃO

DESAPEGO É TRANSFORMAÇÃO

Ela estava lá. A bicicleta encostada no poste foi primeira coisa em que reparei quando dobrei a estreita e sinuosa rua da oficina na charmosa cidadezinha próxima à montanha que abriga o mosteiro. O sol do fim de tarde refletia nas ruas de pedra e emprestava tons pastéis às construções seculares. Como a loja de Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos, não funcionava em horários regulares, encontrá-lo era sempre um jogo de sorte. Fui saudado com a alegria e a elegância habituais. Ele passou um café fresco e quando sentamos diante das canecas fumegantes, fomos surpreendidos pela chegada de uma sobrinha do artesão. Uma moça bonita, educada e com feições de incertezas coloridas no rosto, que tinha vindo passar uns dias de descanso no interior. Após os cumprimentos de praxe, a jovem foi bem objetiva. Sempre ouvira o tio falar em suas conversas sobre a importância do desapego. Entretanto, ela era paciente de um prestigiado psicanalista na capital e, na última consulta, foi aconselhada a não abandonar os seus desejos, pois isto significava desistência e, por consequência, um sinal de fraqueza.

Loureiro ouviu a tudo com paciência e em silêncio. Ao término, diante do olhar aflito da sobrinha, falou com a voz serena e baixa: “Sou um leitor interessado e um observador atento. No entanto, você sabe, não tenho formação acadêmica. Apenas digo o que sinto, expresso o meu olhar sobre todas as coisas. O risco de eu estar errado é enorme”. Me intrometi e brinquei dizendo que os alquimistas são autodidatas. Era inegável a magia do artesão de transformar chumbo em ouro, ao menos no que se refere a transmutar em luz as sombras que habitam em todos nós. A jovem insistiu para que ele falasse, vez que adorava ouvir os posicionamentos do tio, que classificou como desconcertantes. O sapateiro pediu para que ela se servisse de café e sentasse. Em seguida disse: “A palavra tem o poder de vestir e revestir a uma ideia. Ela dá forma ao pensamento, daí o seu grande poder. Os antigos diziam que somos feiticeiros das palavras, pois, com elas, podemos semear a coragem ou espalhar o medo. Digo isto, pela necessidade de adequar o que penso no exato contexto, com a melhor palavra”.

“Desapego não é desistência. Não, de jeito nenhum. Desapego é transformação, ferramenta indispensável à evolução”. A moça interrompeu e disse que não estava entendendo. O artesão sorriu com ternura e explicou: “Sofremos condicionamentos culturais, sociais e ancestrais que exercem forte influência na formação das ideias, na interpretação das emoções e, por consequência, influenciam as nossas escolhas. Muitas vezes, esta formatação compulsória no leva a criar metas e desejos que ligam o sucesso e a felicidade a objetivos meramente materiais e a prazeres sensitivos. Na grande maioria das vezes estão ligados a dinheiro, a fama, poder e sexo. O ego quer os aplausos e os brilhos da tribo, as conquistas aparentes, sem perceber o vazio que esta performance ocasiona a longo prazo. Em algum momento, a pessoa mais atenta, ao perceber que os conceitos que estruturaram a sua trajetória podem estar obsoletos, vez que não se traduziram na felicidade prometida, entende a necessidade da mudança de rota. Seguir a melodia no velho diapasão, na medida que a ópera avança, já não sustenta a leveza nem a plenitude da canção. Aquela sinfonia não lhe toca mais o coração. Resta apenas um enorme vácuo, onde o som não se propaga”. Deu uma pequena pausa para observar os olhos atentos da sobrinha antes de concluir: “Então, ele percebe que precisa reinventar os conceitos que o fizeram andar um longo trecho sem chegar a lugar nenhum. Começa a entender que não se mede sucesso pela régua financeira, mas pelo compasso da plenitude. Não é ter tudo, mas ser todo. O desapego se reflete na transformação das velhas formas. É pura alquimia”. A jovem tornou a interromper para que ele fosse mais claro. Loureiro não se fez de rogado e falou: “O que denominamos ‘velhas formas’ é um conjunto de ideias, preconceitos e condicionamentos que nos amarra a padrões que, em algum momento, se mostram ultrapassados, por se tornarem ineficientes ou inúteis. É a hora da metamorfose”.

“A transmutação é vital para que possamos deixar para trás toda aquela maneira de pensar e viver que não serve mais por não apresentar o conteúdo vital que impulsiona à evolução. É o entendimento de que todos os desejos se desenharam borrados na conquista da verdadeira felicidade, pois não trouxeram as cores da inconfundível sensação de paz. É a hora de entrar no casulo para entender e, depois, libertar os sonhos; da lagarta deixar de se arrastar ao se permitir as asas da borboleta”.

“Aqui se faz imprescindível uma correta distinção entre desejo e sonho. O desejo está ligado ao ego, à vaidade, ao prestígio social, às conquistas meramente materiais, às paixões. Ao brilho”.

“O sonho é o propósito da alma, do âmago do ser, reflete os seus dons e talentos a serem utilizados para as conquistas imateriais de amor e dignidade, a evolução espiritual. Está ligado à luz”.

“Enquanto o desejo infla o orgulho, o sonho dá sentido a humildade; o desejo te leva às condecorações da aldeia e às manchetes das revistas, o sonho faz com que, em silêncio, o céu entre em festa; o desejo quer a fama dos holofotes, o sonho anseia pela chegada da manhã. Entender o sentido e a diferença entre desejo e sonho é se perceber imortal e se tornar andarilho na viagem sem fim. Saber que estamos aqui para aprender, transmutar, compartilhar e, então, seguir”.

“Desapego não é desistência, assim como desapego não é covardia. Pelo contrário, é uma escolha de profunda coragem abrir mão do que muitas pessoas a sua volta louvam como vitória. O que a maioria acredita ser a glória, para você já não tem nenhum valor. Pensar que desapego é covardia é o mesmo que se enganar ao acreditar que ser manso e pacífico, ao decidir pela não-violência como instrumento de luta, seja característica dos covardes. É não entender a essência da vida, a força revolucionária da paz. É necessário vontade e coragem incomensuráveis para abdicar das balizas sociais e culturais na construção de um novo ser, agora comprometido com as conquistas infungíveis, aquelas que não enferrujam, não pesam, não deterioram. É escolher a fruta pelo poder multiplicador da semente e não pelo brilho efêmero da casca”.

“Não raro vejo profissionais bem-sucedidos e famosos, sem qualquer dificuldade financeira, com condições para usufruir de todo o conforto e tecnologia que a modernidade oferece. No entanto, estão envolvidos em esfera de depressão, pânico, medo, completamente perdidos. Alcançaram o mais alto degrau da escala projetada pelos antigos conceitos. Têm dinheiro, são realmente bons no que fazem, recebem a justa homenagem pelas suas realizações, todavia, comprimidos de ansiolíticos, caixas de antidepressivos, intermináveis terapias, fanatismo de toda ordem, desejos inconfessáveis de suicídio rondam essas pessoas como fantasmas em mansões assombradas. Não tiveram o entendimento para trocar a aparência pela essência, preferiram viver pela expectativa do mundo ao invés de permitir que o silêncio lhe soprasse a própria verdade e indicasse o Caminho. Faltou coragem em desapegar dos desejos para viver os sonhos. Estão no vazio vital; sentem fome de luz”.

Deu uma pausa, olhou a sobrinha com seriedade e disse: “Desapegar das paixões para que o amor floresça não é para os fracos. O amor é reservado aos fortes. É impossível amar sem desapego. É impossível ser livre sem desapego. Só assim nos permitimos a leveza para que as asas se manifestem. Sem elas não se chega às Terras Altas, onde se fincam os pilares da paz”.
“Somente quem entende a dimensão do desapego é capaz de compreender a distância entre o amor e a paixão”, explicou Loureiro. A moça quis saber como diferenciar o amor da paixão. O bom artesão arqueou os lábios em leve sorriso de alegria e disse: “Imagine uma pessoa atravessando um deserto, sob sol escaldante e com muita sede. Ela encontra uma enorme jarra com água fresca e se delicia até a última gota. Esta sensação é pura paixão”. Ficou instantes em silêncio e cerrou os olhos para falar devagar, de maneira sentida: “Amor é quando enfrentamos o mesmo deserto, sob o mesmo sol à pino e a mesma sede. Encontramos a mesma ânfora com água... bebemos metade... e deixamos a outra metade para quem vem atrás”.

Uma lágrima escapou pelo rosto da jovem, que, em seguida se iluminou com um belo sorriso. Ela abraçou o elegante sapateiro em sincero agradecimento. Não disse palavra e se foi. Já não era mais a mesma que havia entrado há pouco na oficina.

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