O que mudou com a UPP? - Por Leonarda Musumeci

Foto: Gabriel de Paiva, Jornal EXTRA

A uma pergunta aberta sobre quais as melhores coisas de se morar na comunidade, as respostas mais frequentes foram: transporte/facilidade de acesso (20%), comércio (16%) e boa convivência (16%). Quanto às piores coisas, mencionaram-se com mais frequência falta de infraestrutura e de serviços urbanos (40%), seguida de violência, insegurança, confrontos e tiroteios (32%) – justamente os dois aspectos da vida nas favelas que a chamada “pacificação” prometia melhorar. Em contraste com o alarde oficial e midiático em torno desse programa, a percepção de impactos gerados pela presença da UPP parece ser muito baixa para a maioria dos moradores dos territórios ocupados. Indagou-se aos entrevistados em que momento certas coisas haviam sido ou eram mais frequentes, incluindo tanto aspectos positivos (acesso a serviços públicos e privados, obras de infraestrutura, projetos sociais, oportunidades de trabalho e liberdade de ir e vir) quanto negativos (aumento dos alugueis, êxodo de moradores, tiroteios, mortes, desaparecimentos, roubos, furtos e estupros). Os momentos propostos foram três – antes da entrada da UPP, no início da UPP e “agora” (no período da pesquisa) –, prevendo-se ainda a opção “não faz diferença”. À exceção de tiroteios e de mortes por arma de fogo, que serão comentados mais adiante, em todos os demais itens a resposta “não faz diferença” foi majoritária, com proporções variando entre 55 e 68% O que os dados mostram, assim, é que a entrada da UPP não parece constituir, como se imaginaria, um marco fundamental na memória da maior parte dos seus supostos beneficiários – pelo menos não como registro de significativas melhorias nas condições de vida dentro das favelas. Um dos pesquisadores anotou a reação de um morador que ilustra bem essa desimportância: “Em todas as perguntas sobre UPP, [o entrevistado] respondeu que era indiferente, porque não vê a UPP atuar ali, não influencia na vida das pessoas, então tanto faz eles ficarem ou saírem”. Mesmo em relação à economia local (comércio e outras atividades geradoras de renda), a maioria das pessoas (58%) considera não ter havido nem melhora nem piora; 30% acreditam que a vida econômica da comunidade melhorou, 10%, que piorou e 2% não souberam ou não quiseram responder. Só os habitantes da região Centro/Zona Sul têm uma avaliação mais otimista desse tipo de impacto: metade deles afirma que a economia da favela melhorou com a UPP e apenas 8%, que piorou; na Zona Oeste, em compensação, somente 26% percebem melhoria e 15% acham que a situação piorou. UPP: ÚLTIMA CHAMADA VISÕES E EXPECTATIVAS DOS MORADORES DE FAVELAS OCUPADAS PELA POLÍCIA MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 18 Quando se indaga se a UPP, de modo geral, trouxe benefícios e se trouxe problemas, menos de 1/3 dos moradores, nos dois casos, respondem afirmativamente (Gráfico 1). Ou seja, não são muitos os que identificam mudanças expressivas, boas ou ruins, decorrentes da ocupação da polícia. E há alguma superposição entre as duas respostas: 22% dos que apontaram benefícios também apontaram malefícios trazidos pela UPP. GRÁFICO 1 A UPP trouxe benefícios para a comunidade? E problemas? (%) 30 29  Sim  Não  NS/NR 61 61 Benefícios Problemas Essas opiniões variam bastante, porém, quando se consideram certas características dos indivíduos e das comunidades, assim como certas experiências diretas com a polícia: • Quanto mais jovem o(a) morador(a), menor a chance de que admita benefícios da UPP e maior a de que aponte malefícios. • Pessoas que sofreram abordagens ou tiveram a casa revistada nos últimos 12 meses antes da pesquisa negam benefícios e apontam malefícios em proporções muito superiores às que não passaram por essas experiências (Gráfico 2). • Moradores de pequenas UPPs enxergam benefícios em proporção bem maior (42 a 29%) e malefícios em proporção bem menor (22 a 45%) do que moradores de UPPs grandes. • Também há diferenças significativas entre UPPs de distintas regiões da cidade: moradores da Zona Centro/Sul são os que mais afirmam que a UPP trouxe benefícios (48%) e os da Zona Oeste, os que menos acreditam nisso (23%); vice-versa, os desta última região acham que a UPP trouxe problemas em proporção muito maior que os da região Centro/Sul (45 contra 18%).  Sim  Não  NS/NR UPP: ÚLTIMA CHAMADA VISÕES E EXPECTATIVAS DOS MORADORES DE FAVELAS OCUPADAS PELA POLÍCIA MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 19 GRÁFICO 2 Opiniões sobre se a UPP trouxe benefícios ou problemas para a comunidade, segundo experiências de abordagem e revista nos últimos 12 meses (%)  Nenhuma vez  Uma vez  Mais de uma vez 36,6 34,6 26,8 26,5 29,8 22,6 36,6 56,3 19,1 14,7 60,5 67,7 Trouxe benefícios Trouxe problemas Trouxe benefícios Trouxe problemas Abordagem com revista corporal Casa revistada Dos 30% de entrevistados que consideram a UPP portadora de benefícios, a maioria (56%) menciona como ganhos a segurança e a tranquilidade; outros citam, em proporções bem menores, projetos sociais e serviços públicos ou privados (16%); e outros ainda fazem questão de ressaltar que só houve melhora no início da ocupação (16%). Na outra ponta, para os que acham que a UPP trouxe malefícios, os problemas mencionados pela maioria são tiroteios e confrontos (53%). Em menor escala, também são citados abusos, violência e desrespeito por parte dos policiais (8%); conflitos entre moradores e entre policiais e moradores (7%); perda da liberdade devida a limitações, proibições e vigilância contínua impostas pela UPP (6%), além de outras dificuldades. SEGURANÇA E INSEGURANÇA No que toca, especificamente, à sensação de segurança, perguntou-se a todos os entrevistados se se sentiam mais seguros na comunidade antes da entrada da UPP, logo no início da UPP, agora (no momento da pesquisa) ou se não fazia diferença. Mais uma vez, a última opção obteve maior número de adesões (44%) e os percentuais para antes da UPP (16,8%) e para agora (22,1%) superaram o da resposta “no início da UPP” (14,7%). Mais um descompasso, portanto, entre a percepção externa à favela de que a “pacificação”, num UPP: ÚLTIMA CHAMADA VISÕES E EXPECTATIVAS DOS MORADORES DE FAVELAS OCUPADAS PELA POLÍCIA MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 20 primeiro momento, produziu grande impacto positivo na segurança dos moradores, e a visão retrospectiva dos que vivenciaram diretamente o acontecimento, cuja memória não registra esse instante inicial como divisor de águas na vida da comunidade. Novamente, as respostas variam segundo tamanho e localização da UPP, e segundo experiências pessoais com a polícia. • Nas unidades classificadas como grandes, o percentual dos que disseram sentir-se mais seguros no período anterior à “pacificação”, ou seja, que acreditam que a presença da UPP piorou a segurança (24%), é maior que a proporção encontrada nas médias unidades (15%) e quase o dobro da registrada nas unidades pequenas (13%). • Outra distância considerável nessa avaliação verifica-se entre UPPs da Zona Oeste e as da região Centro/Sul: enquanto 24% dos entrevistados da primeira área disseram que a sensação de segurança era maior antes da ocupação e só 9% responderam que era maior agora, no segundo grupo as proporções foram, respectivamente, 10 e 40%. • As UPPs do Centro/Zona Sul registraram o menor percentual de respostas “não faz diferença” (35%), sendo os mais altos verificados na Zona Norte 2 e na Zona Oeste (49 e 46%, respectivamente). • Pessoas que haviam sido abordadas e revistadas mais de uma vez por policiais da UPP nos últimos 12 meses responderam que se sentiam mais seguras antes da chegada da UPP em proporção bem maior do que entre as que não haviam sido revistadas nenhuma vez (31 contra 14%). Embora no conjunto da amostra quase metade dos moradores tenha afirmado que a sensação de segurança não mudou desde a entrada da UPP, 78% concordaram com a frase “hoje a gente vive inseguro porque nunca sabe quando vai ter tiroteio na comunidade”, sendo que 70% assentiram integralmente e os outros 8%, parcialmente. A proporção de concordância total ou parcial não varia muito entre regiões da cidade, mas nas UPPs classificadas como grandes, independentemente da localização, a parcela de concordância chega a 92%, contra 70% nas unidades pequenas. Em outra pergunta, cerca de metade dos moradores afirmou que os tiroteios ocorrem com mais frequência agora do que antes ou no início da UPP. Logo, se grande parcela não percebe mudanças no tempo quando a pergunta focaliza uma sensação geral de segurança, a insegurança provocada especificamente pelos tiroteios parece ser muito palpável no momento UPP: ÚLTIMA CHAMADA VISÕES E EXPECTATIVAS DOS MORADORES DE FAVELAS OCUPADAS PELA POLÍCIA MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 21 atual, refletindo o desmanche do projeto original e a retomada da política de confronto nas favelas sob ocupação da PM (cf. Musumeci 2015). Alguns dos entrevistados relataram aos pesquisadores casos recentes de vizinhos e familiares atingidos por “balas perdidas”. Mencionaram também outros impactos dos tiroteios no cotidiano, como a suspensão ou mudança dos horários de funcionamento de creches e escolas, além de momentos de grande temor, incerteza e insegurança. Um entrevistador anotou: A comunidade está sob forte tensão, pois no sábado, (...), mataram um policial, e em represália, no dia (...), mataram dois bandidos, e a comunidade foi invadida pelo BOPE e CORE, caveirão, e ainda estavam com medo de o BOPE entrar nesta segunda-feira; as ruas estavam desertas, e as crianças não foram para as escolas. Os próprios pesquisadores vivenciaram mais de uma vez tiroteios e confrontos enquanto faziam as entrevistas. Eis dois relatos: O questionário foi feito em um clima bem hostil, pois os policiais da UPP se encontravam armados, apontando o fuzil em direção dos becos. No momento da entrevista, eles soltaram uma granada de efeito moral, bem perto de onde eu estava; daí começou o tiroteio. Tivemos que nos abrigar na casa do entrevistado, só podendo nos retirar quando sentimos que os tiros já haviam cessado. Dia bem difícil. Começou um tiroteio vindo do lado da polícia; tive de parar a entrevista. Tivemos que sair, pois não dava para ficar na comunidade. Há muito tempo não ouvia tantos tiros, vindos da parte da polícia. “A UPP trouxe problemas, pois eles entram atirando, aí os meninos [do tráfico] respondem”, disse a entrevistada. No grupo focal, um diálogo entre dois jovens de diferentes favelas enfatizou a imprevisibilidade dos confrontos, que, como já dito, 78% dos entrevistados na pesquisa amostral hoje sentem como grande fonte de insegurança: – Antigamente você sabia quando ia ter um tiroteio, quando ia ter uma operação, qualquer coisa do tipo. Hoje em dia você não sabe. Você sai e não sabe se vai poder voltar. – Mas olha só: até quando não tinha UPP, todo mundo vivia assim, com medo de uma facção invadir um morro. – Na minha comunidade, não. Antes da UPP eu me sentia seguro dentro da comunidade. Não era por UPP: ÚLTIMA CHAMADA VISÕES E EXPECTATIVAS DOS MORADORES DE FAVELAS OCUPADAS PELA POLÍCIA MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 22 causa do tráfico. Quando a polícia entrava, a gente já sabia que a polícia estava entrando, então a gente ficava dentro de casa, se [protegia] da melhor forma. Agora com a UPP, não. Corre o risco constante. Eu vou na padaria comprar um pão e do nada pode acontecer algum tiroteio. Antigamente tinham fogos [de artifício, disparados por “olheiros”, para anunciar a chegada da polícia]. Perguntava-se no questionário se o(a) morador(a) ou alguém da sua família presenciara algum episódio de disparo de arma de fogo por policiais nos últimos 12 meses antes da pesquisa: 39% responderam afirmativamente, sendo que 34% haviam visto ou tomado conhecimento mais de uma vez desse tipo de episódio. Nas comunidades classificadas como grandes, os percentuais foram bem maiores (47% uma vez e 40%, mais de uma), mas as distâncias mais expressivas verificaram-se entre regiões da cidade: na Zona Oeste, mais da metade dos moradores disseram ter visto ou sabido de disparos da polícia, sendo que 47%, mais de uma vez; já no Centro/Zona Sul, a proporção para pelo menos um episódio foi de cerca de 24% e para mais de um episódio, 18%. A entrada de policiais de fora da UPP (Bope, Core ou outros grupamentos) fora presenciada ao menos uma vez por 41% dos entrevistados de todas as UPPs; nas UPPs da Zona Norte 1, porém, 51% dos moradores disseram ter visto ou sabido disso ao menos uma vez nos últimos 12 meses (Gráfico 3). GRÁFICO 3 Morador(a) ou alguém da família presenciou estes fatos pelo menos uma vez nos últimos 12 meses? (%)  Centro/Zona Sul  Zona Norte 1  Zona Norte 2  Zona Oeste  Todas as UPPs 33,7 24,2 53,1 29,8 39,1 Policiais disparando arma de fogo 39,2 32,0 36,7 51,0 40,9 Entrada de policiais de fora da UPP 21,1 15,6 29,0 30,0 25,9 Policiais usando arma não letal 7,9 7,3 10,3 11,3 9,5 Policiais extorquindo moradores UPP: ÚLTIMA CHAMADA VISÕES E EXPECTATIVAS DOS MORADORES DE FAVELAS OCUPADAS PELA POLÍCIA MILITAR NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 23 Em suma, esse primeiro conjunto de avaliações realça, por um lado, a percepção relativamente baixa de mudanças boas ou ruins trazidas pela presença da UPP, inclusive nos aspectos contemplados pelas promessas centrais do programa: gerar segurança, melhorar a infraestrutura urbana e ampliar a oferta de serviços públicos nas favelas. O muito que se alardeou, ademais, sobre os benefícios econômicos para as comunidades, decorrentes da ocupação policial e da expulsão ou do enfraquecimento dos grupos criminosos armados, tampouco encontra ressonância na avaliação dos moradores, mais de 2/3 dos quais acreditam que a economia local ficou na mesma ou até piorou com a entrada da UPP. A profecia ufanista de que o “choque de ordem” traria o “choque de progresso” (Neri 2011) só parece ter-se realizado, e assim mesmo parcialmente, na percepção de habitantes de favelas do Centro e da Zona Sul. Por outro lado, as respostas a algumas perguntas sobre segurança e insegurança parecem reforçar a visão geral de falência da chamada “pacificação”, com o aumento dos confrontos e tiroteios, o abandono da proposta original de “policiamento de proximidade” e a crescente conversão das UPPs em mera ocupação militar, devotada aos métodos tradicionais, violentos, de “guerra as drogas” e “combate ao crime”. A criação de miniBopes, os chamados “Grupamentos Táticos de Polícia de Proximidade” (GTPPs), com função essencialmente repressiva (cf. Esperança 2014; Musumeci 2015); a construção de torres blindadas;25 a retomada da política de confronto e o consequente aumento dos homicídios decorrentes de intervenção policial nas UPPs26 atestam o fracasso do projeto e se traduzem, para os moradores e policiais de boa parte das favelas ocupadas, em medo, tensão, insegurança e instabilidade – ou seja, no exato oposto do que se poderia chamar de “pacificação”. Uma terceira constatação, que será crescentemente reforçada nas próximas seções do trabalho, é a dos impactos desiguais do programa segundo a dimensão populacional e a localização geográfica das unidades, registrando-se avaliações bem mais otimistas sobre a presença da UPP nos grupos de favelas classificados como pequenos (menos de 21 mil habitantes) do que nas comunidades ou complexos grandes (mais de 50 mil habitantes), e nas da região Centro/Sul muito mais que nas de outras regiões, em especial nas da Zona Oeste da cidade. 25 Sobre a construção de uma cabine blindada na UPP do Alemão e o projeto de construir várias outras, ver a matéria “Cabine blindada no Alemão expõe desafios das UPPs”. Isto é, 29/04/2017 [http://www.ucamcesec.com.br/participacao/cabineblindadanoalemao/] e a entrevista de Silvia Ramos ao jornal Extra: “‘É preciso começar do zero’, diz especialista sobre pacificação do Alemão”, 26/04/2017 [http://www.ucamcesec.com.br/entrevista/e-preciso-comecar-zero-diz-especialista-sobre-pacificacao-alemao/]. 26 Nas favelas com UPP, os homicídios provocados pela polícia, depois de uma queda de 89% entre 2007 e 2013, aumentaram 100% entre 2013 e 2015, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio [http://www.ispdados.rj.gov.br/#].

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