O DINHEIRO SALVOU O FUTEBOL BRASILEIRO DO RACISMO -DO LIVRO DE JONES ROSSI E LEONARDO MENDES JUNIOR




O DINHEIRO SALVOU O FUTEBOL BRASILEIRO DO
RACISMO
A bola posicionada no quarto de círculo é o sinal para um
relaxamento não escrito nas regras do futebol. Ela parte do pé direito do
batedor, ganha altura e velocidade até chegar à linha lateral da grande área,
onde inicia a curva que fará com que caia perigosamente na direção do gol,
um pouco além da primeira trave e abaixo do travessão. Enquanto isso, uma
dezena de jogadores troca todo tipo de empurrões, puxões e ofensas em um
pedaço de grama menor que um lavabo. Antes de todos se recolocarem para
um novo escanteio, um grito, alto o bastante para se sobrepor aos demais sons
captados pelos microfones de transmissão, claramente ultrapassa os limites
do momento mais sem lei de uma partida de futebol:
– Seu macaco do caralho!
O grito parte de Danilo, zagueiro do Palmeiras, homem pardo na
eclética paleta racial brasileira. O alvo é Manoel, zagueiro do Atlético
Paranaense, indiscutivelmente negro.
Os dois jogadores são os mais ativos no vale-tudo da grande área
naquele momento do primeiro confronto de oitavas de final da Copa do Brasil
de 2010. Para se livrar do marcador e ter mais chance de fazer um gol,
Manoel dá uma cabeçada no adversário. Após o goleiro Marcos socar a bola
pela linha de fundo, Danilo revida com uma cusparada e o grito:
– Seu macaco do caralho!
O jogo fica momentaneamente paralisado. Alguns empurrões
depois, com a devida mediação da arbitragem, a partida é retomada. No
segundo tempo, Manoel pisa deliberadamente em Danilo. Na semana
seguinte, a Arena da Baixada, estádio do Atlético, recebe o jogo de volta,
ocasião em que o jogador ofendido se recusa a cumprimentar o agressor. A
essa altura, Danilo já é réu em um inquérito da Justiça Desportiva.
Surpreendentemente, porém, o que tem potencial para lhe causar prejuízo
maior é a cusparada, não a ofensa racial.
O futebol segue uma legislação própria, concentrada no Código
Brasileiro de Justiça Desportiva. Ali está reunido tudo o que atleta e equipe
não podem fazer dentro da disputa e a que tipo de punições estão sujeitos. Em
2010, no universo paralelo do futebol, praticar ato discriminatório, desdenhoso
ou ultrajante relacionado a preconceito em razão da cor – um crime que, no
mundo real, pode dar cadeia – resulta em um afastamento de cinco a dez
partidas. O mesmo conjunto de normas dava à cusparada, agressão
inexistente no Código Penal Brasileiro, gravidade suficiente para valer de seis
a doze partidas de suspensão.13
Danilo foi julgado pela Justiça Desportiva dias depois do jogo de
volta e recebeu punição condizente aos dois delitos segundo a lei do futebol. A
cusparada rendeu seis jogos de afastamento e a ofensa racial, cinco. Ao
explicar seu voto, o relator do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD,
o STF do futebol) qualificou a cusparada como “ofensa gravíssima” e o grito
“seu macaco do caralho”, como “ofensa grave”. Um dos auditores, Nicolao
Constantino, sequer considerou ofensa racial e votou por dois jogos de
afastamento.14
Atenuar o efeito do termo “macaco” no meio
futebolístico foi a estratégia de defesa dos advogados de
Danilo na Justiça comum. Não colou. Em 19 de
dezembro de 2012, o Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo condenou o zagueiro a um ano de reclusão,
pena convertida no pagamento de 540 salários mínimos –
cerca de R$ 350 mil.
A dificuldade em detectar e punir o racismo é histórica no tribunal.
Usualmente, ofensas desse gênero são qualificadas como fruto do calor da
partida15 – uma parcimônia consoante à cultura nacional e, mais
especificamente, ao contexto em que o futebol se desenvolveu no Brasil.
Há pouco mais de um século, quando o futebol nascia no Brasil,
jogadores negros não só eram xingados impunemente em campo, como mal
eram admitidos no gramado. Além da péssima herança da mentalidade
escravista, vários fatores explicam essa exclusão. No fim do século 19, o
mundo vivia o auge do pensamento racial, segundo o qual a miscigenação era
considerada uma das causas da miséria e do atraso brasileiros. Era comum
intelectuais da época emitirem opiniões como a do zoólogo suíço Louis
Agassiz, que visitou o Brasil em 1865: “Que qualquer um que duvide dos
males da mistura de raças […] venha ao Brasil, pois não poderá negar a
deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em
qualquer outro país do mundo”.16 Pouca gente queria se misturar. O
sociólogo Mauricio Murad define:
Uma longa e profunda herança colonialista e escravista pesava
ainda nas nossas estruturas sociais, nas nossas instituições, e o
futebol absorveu, direta ou indiretamente, essas influências. Por
isso foi, durante os primeiros tempos, elitista, racista e excludente,
reproduzindo constantes estruturais de nossa formação, como a
concentração e a exclusão. O racismo foi um dos traços mais
pregnantes das conjunturas iniciais do futebol brasileiro. Um
racismo acoplado a um elitismo social e cultural flagrantes na
concentração de rendas, de poder e de oportunidades.17
Outro fator a deixar os negros de fora do futebol é a imagem que o
esporte tinha quando chegou ao país. O football, como o chamavam na época,
era considerado um esporte de riquinhos, de ingleses – uma imagem talvez
parecida com a do rúgbi hoje em dia. O escritor Graciliano Ramos chegou a
dizer, em 1922, que o futebol jamais pegaria no Brasil, era “uma
estrangeirice”, “uma roupa de empréstimo que não nos serve” (leia mais
sobre isso no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil). Só a partir
da Copa de 50, aquela que perdemos para os uruguaios na final, que o Brasil
começaria a ser considerado o “país do futebol”.
Assim, os clubes nasceram como comunidades fechadas de classes
e grupos de imigrantes. Italianos formaram times em São Paulo, Minas
Gerais e Paraná, todos chamados Palestra Itália; alemães, no Rio Grande do
Sul (Grêmio) e no Paraná (Coritiba); portugueses fundaram o Vasco da
Gama e a Portuguesa; e ferroviários criaram o Corinthians.
O futebol surgia como uma oportunidade de restabelecer a ordem
social embaralhada pela abolição, em 1888, e pela proclamação da
República, em 1889. A formação dos times dentro dos clubes tinha forte
orientação racial. Aqueles que não restringiam estatutariamente a brancos o
acesso aos seus quadros eram seletivos por meio dos preços de mensalidade e
título. Se tudo isso falhasse, ainda havia a condição de que um novo associado
devia ser aceito por dois terços dos já existentes.18 Brancos na essência, os
clubes se organizavam em ligas, que eram desfeitas e reformatadas à medida
que os negros ameaçavam tomar parte delas.
A hierarquia social e racial era mantida no público e
mesmo nas brigas. A arquibancada era dos brancos, e a
geral, quase sempre na encosta dos morros, dos
negros.19 Em conflitos generalizados, um preto da geral
só batia em um branco se ele também fosse da geral.20
Em hipótese alguma havia contato físico com a elite.
A solução encontrada pelos negros foi organizar ligas clandestinas,
em que se praticava de memória o futebol a que eles assistiam das gerais e
por cima do muro dos clubes brancos. Em São Paulo, o torneio paralelo
atravessou os anos 20 e 30 e chegou a contar com 12 equipes. Entre 1927 e
1939, o campeão da liga dos negros enfrentava o campeão dos brancos,
sempre em 13 de maio, na disputa da Taça Princesa Isabel. Nos resultados
conhecidos do chamado clássico preto versus branco, vantagem dos negros,
com quatro vitórias, um empate e duas derrotas.21
No Rio Grande do Sul, o veto do Internacional à entrada do Rio-
Grandense – time formado por negros – na Liga Metropolitana motivou o
surgimento de outra competição paralela, no início da segunda década do
século. Chamada jocosamente de Liga das Canelas Pretas por causa da cor
(não só) das pernas dos jogadores, durou até os anos 20, quando começaram
a ser promovidos os primeiros duelos com os times de brancos. O Esporte
Clube Ruy Barbosa lançou o desafio para arrecadar fundos e perdeu. O
Grêmio, conhecido como “escrete branco”, também perdeu. Foi o que bastou
para os outros clubes fazerem um arrastão nos elencos da Liga das Canelas
Pretas, que acabou extinto por falta de jogadores. A exceção foi o Grêmio,
pois uma cláusula em seu estatuto previa a perda do terreno, doado por
alemães, onde o clube jogava, caso fossem aceitos jogadores negros.22
Restrição derrubada somente na metade do século passado, com a
contratação de Tesourinha, atacante do Vasco, em 1951.
Nossos primeiros craques eram
funcionários-fantasma
Pois bem: como foi que essa discriminação se reverteu? Se o
futebol brasileiro nasceu excluindo negros, o que aconteceu para, décadas
depois, eles serem tratados como heróis nacionais e celebridades da TV? Se é
verdade que alguns jogadores e torcedores ainda são racistas no estádio,
também é verdadeira a admiração que os brasileiros têm por seus, como
dizia Nelson Rodrigues, “negros ornamentais e divinos” de Garrincha a
Robinho. Pois o que moveu os clubes a aceitarem negros?
Um dos fatores foi o novo valor que a miscigenação ganhou a
partir da década de 1920. Com os modernistas e principalmente com a
publicação de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Frey re, a miscigenação
passou a ser vista não como causa de problemas, mas como a singularidade
que enriquecia o Brasil. Os intelectuais passaram a buscar uma identidade
nacional que combinasse o negro, o branco e o índio. Basta atentar para a
caracterização de Macunaíma, a representação do brasileiro genuíno feita
por Mário de Andrade. A obra define o futebol, inventado com raiva por
Macunaíma, como uma das três pragas que assolavam o país, junto com o
bicho-do-café e a lagarta rosada.23
Houve um motivo pragmático ainda mais importante. A proibição
de escalar jogadores negros criava um problema para técnicos e cartolas.
Toda uma seleção de atletas com habilidade, porte físico e vontade de jogar
bola ficava de fora dos gramados. Não demorou para dirigentes perceberem
a vantagem competitiva que teriam caso deixassem ideologias antiquadas de
lado e aceitassem atletas negros. Mas as regras da época não permitiam que
os jogadores fossem remunerados, e sem berço de ouro, os negros
precisavam trabalhar – não tinham tempo para gastar jogando futebol.
A solução que os diretores dos clubes encontraram foi empregar
nos seus negócios, ou nos dos patrocinadores, negros que,
“coincidentemente”, eram bons de bola. Quem jogava bem poderia ser
elevado à categoria de funcionário-fantasma. A revista Sport Illustrado
descreveu:
No comércio, na indústria, na lavoura e nas repartições públicas, é
o ser hábil jogador o meio fácil de admissão, o mérito para os
acessos e promoções. A preferência, então, é escandalosa, sendo
um jogador e outro não. É, assim estão explicadas as razões porque
há no Rio hoje em dia, somente sem colocação, sem emprego, os
rapazes pacas fundas, e leigos em matéria de football.24
Na prática, foi esse o caminho usado pelo Bangu para ter no seu
time, em 14 de maio de 1905, Francisco Carregal, um tecelão negro da
Companhia Progresso Industrial do Brasil – Fábrica Bangu. Trata-se do
primeiro registro que se tem de um negro em um time de futebol no Brasil.
Foi, também, o atalho utilizado pelo Vasco para se tornar o primeiro
clube campeão no país com uma equipe miscigenada, em 1923.
Funcionários-fantasma de comerciantes portugueses que torciam para o
clube, os jogadores vascaínos tinham tempo para treinar. Logo cedo,
enquanto os adversários estudavam ou trabalhavam, os atletas do Vasco
saíam para treinamento em sessões que se repetiam à tarde e, muitas vezes,
seguiam noite adentro. No domingo, o oponente corria no primeiro tempo,
saía em vantagem, perdia o fôlego e era atropelado pelos vascaínos no
segundo tempo.25 Assim, o Vasco foi campeão, passou a ser o “time da
virada” e transformou-se em um marco da abertura racial no futebol
brasileiro. Não por convicção, mas por conveniência. Uma trapaça
rapidamente adotada pelos demais clubes.
Extraído do Guia Politicamente incorreto, de Jones Rossi e Leonardo Mendes Junior, Editora Le

Comentários

AO ACESSAR ESTE BLOG VOCÊ TENHA O PRAZER DE SE DEPARAR COM AS COISAS BOAS DA NOSSA TERRA! OBRIGADO E VOLTE SEMPRE!