Os negros fizeram o futebol brasileiro se profissionalizar - (Do livro de Jones Rossi e Leonardo Mendes Júnior
Os negros fizeram o futebol brasileiro se profissionalizar
A proliferação dos funcionários-fantasma foi o primeiro passo para
a profissionalização do futebol brasileiro. O sucesso do Vasco em 1923
impunha às demais equipes um pacote pronto: para vencer, era preciso ter
negros no time. Negros que precisavam de remuneração para sobreviver e
jogar. Remuneração que precisava se adequar ao amadorismo vigente na
época.
A Associação Metropolitana de Esportes Amadores (Amea)
formou, em 1924, uma Comissão de Sindicância para verificar se o São
Cristóvão, clube suburbano repleto de negros, não tinha jogadores, na prática,
profissionais. A inspeção vetou a inscrição de três jogadores – dois brancos e
um negro – porque eles não foram encontrados em seus empregos, todos
oferecidos por comerciantes ligados ao clube. A proibição foi derrubada após
uma queixa do presidente do clube, que reclamava de a associação estar
duvidando da sua palavra.26 O São Cristóvão foi campeão dois anos depois.
A essa altura, o Vasco já havia disseminado outro tipo de
pagamento: o bicho, premiação distribuída em caso de vitória. O apelido se
devia ao grupo ou número que cada animal representava no jogo do bicho,
muito popular no Rio de Janeiro desde o fim do século 19: cachorro (5 milréis),
coelho (10 mil-réis), peru (20 mil-réis), galo (50 mil-réis) e vaca (100
mil-réis).27
Primeiro grande ídolo do futebol brasileiro profissional, Leônidas
da Silva levou o pagamento do bicho a uma outra dimensão. Pelo Flamengo,
seu clube na virada dos anos 30 para os 40, combinava a remuneração de
acordo com os gols que marcasse. Às vezes, em represália por não treinar,
ficava fora de uma partida de futebol e era multado. O time perdia, Leônidas
era perdoado, reembolsado pela multa e ainda ganhava bicho como se o
Flamengo tivesse vencido, o que fatalmente aconteceria com ele em
campo.28
Leônidas é quem se pode chamar de primeiro garoto-propaganda
do futebol brasileiro. Além do chocolate Diamante Negro, vendido até hoje,
ganhou dinheiro anunciando todo tipo de produto, inaugurando lojas e
participando de conferências, em uma rotina que quase transformava as
partidas em um estorvo.29
Em 1942, ele trocou o Flamengo pelo São Paulo. Um negócio de
200 contos de réis – 80 contos de réis para o clube e 120 contos de réis para o
jogador. Foi a maior transação da época, mas corresponde em valores atuais
a 11 mil reais, ou menos de 0,01% do que o Barcelona pagou por Ney mar
em 2013. Leônidas foi recebido na estação de trem por 10 mil torcedores.30
No entanto, ele contribuiu para a própria desvalorização. Foi negociado logo
após passar oito meses na cadeia, acusado de falsificação de documento
militar.31
Leônidas se aproveitou de um profissionalismo que ele mesmo
ajudou a formatar. Os bichos irrisórios e a política de vales repassados pelos
clubes, através de intermediários que embolsavam de 20% a 30% do
benefício,32 fizeram com que ele e Domingos da Guia puxassem um êxodo
de jogadores para a Argentina e o Uruguai, no início dos anos 30.
A política de vales foi uma maneira de driblar a
proibição ao pagamento dos jogadores. Dirigentes
arrecadavam uma quantia junto a sócios, torcedores e
comerciantes e a repassavam aos atletas, no chamado
“amadorismo marrom”. Para não caracterizar salário, a
entrega era feita por intermediários. Na maioria das
vezes os atravessadores dividiam a “mordida” com os
próprios dirigentes que promoviam a arrecadação.
Para conter a fuga dos jogadores, os clubes pressionaram pelo
profissionalismo. As ligas ainda propuseram um formato híbrido, que previa
uma remuneração baixa e a manutenção do vínculo amador entre clubes e
jogadores. O “amadorismo profissional” foi recusado e, em 1933, São Paulo
e Santos fizeram o primeiro jogo profissional no país.
O próprio Leônidas é um indicativo da transformação impulsionada
pelos jogadores negros. Antes de se transferir para o Uruguai, cumpriu no
Bonsucesso um contrato clandestino de 400 mil-réis por mês e luvas de dois
ternos e dois pares de sapato. No retorno, fechou um acordo legítimo com o
Botafogo de 1 conto de réis por mês e 10 contos de luvas.33
A história de Leônidas e a dos primeiros clubes campeões do Brasil
mostram que foram a ambição e a vontade de ganhar dinheiro, e não lutas
benevolentes contra a discriminação, que incluíram os negros no futebol
brasileiro.
O Brasil tinha medo de que Pelé e
Garrincha amarelassem
Gilmar; De Sordi, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Dino e Didi;
Joel, Mazola, Dida e Zagallo. O Brasil começou com esses 11 jogadores a
campanha do seu primeiro título mundial de futebol, na Suécia, em 58. Uma
leitura apurada da escalação que derrotou a Áustria por 3 a 0 indica um perfil
revelador dessa equipe. De todos, apenas o meia Didi era negro. Um Brasil
predominantemente branco começou a campanha em Gotemburgo. Sobre
esse quadro, o jornalista João Máximo apontou:
O jogador brasileiro era imaturo, emocionalmente vulnerável e
inseguro. Em uma palavra, ele amarelava. Alguns apontavam,
eufemisticamente, para certas características raciais que nos
faziam sofrer mais que um anglo-saxão, um gaulês, um nórdico ou
um alemão, a terrível lembrança. Não havia outra razão para que o
time brasileiro da estreia em Gotemburgo fosse o mais branco
possível.34
Ao comparar os jogadores brasileiros a artistas, a revista France
Football foi menos polida em uma publicação de 1957:
Sendo um artista, e não um atleta, o jogador brasileiro apaixona-se
de tal forma por sua arte que se deixa dominar por ela. Tem nervos
sensíveis, é um temperamental, um imaturo, um soldado
psicologicamente despreparado para a guerra.35
As duas análises tinham como base a final da Copa do Mundo de
50. Em um Maracanã novo e lotado, o Brasil perdeu por 2 a 1 para o Uruguai,
de virada, e acabou vice-campeão mundial dentro da própria casa. É o único
campeão mundial a não ter erguido o troféu quando anfitrião. No imaginário
popular, havia três culpados. Bigode, por ter levado um tapa do capitão
uruguaio Obdulio Varela (uma história que, depois, se provou inexistente), e
por não conter Ghiggia nos dois gols; Juvenal, por não cobrir Bigode; e
Barbosa, o goleiro que falhou no gol de Ghiggia. Todos negros.36 Também
caiu sobre os negros a culpa pela eliminação para a Hungria, sucedida por
briga generalizada, na Copa de 54, na Suíça.
Para a Copa de 58, na Suécia, o Brasil montou uma estrutura
inédita fora de campo, com chefe de delegação, cozinheiro, preparador
físico, nutricionista, dentista e psicólogo. Uma proposta de aliar a técnica do
jogador brasileiro a aspectos científicos pouco aplicados no futebol nacional
daquela época. A base provinha de um relatório encomendado pelo
presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CDB, a CBF da época),
João Havelange, ao comandante da Escola de Educação Física do Exército,
coronel Antonio Pereira Lima.
O documento apontava a origem humilde e questões raciais como
causas desse perfil do jogador brasileiro. O psicólogo da seleção, João
Carvalhaes, realizou testes psicotécnicos nos atletas e estabeleceu que quatro
deles não tinham condições de defender o país em uma Copa do Mundo.
Garrincha era um deles, por causa do baixo QI e de seus desenhos
impregnados de sua obsessão por sexo. Pelé, com 17 anos, era outro inapto a
suportar a pressão do Mundial.
“Instrução primária, inteligência abaixo da média e
agressividade zero” foi o diagnóstico que João
Carvalhaes fez para Garrincha, em 58. Mesmo com o
efeito quase devastador da avaliação, psicólogos
passaram a ser presença constante na seleção brasileira
em Copas do Mundo. Em 62, porém, Carvalhaes foi
substituído. No tetra, em 94, o elenco foi submetido a
uma análise similar, mas foi definido que ninguém seria
reprovado.
Todos embarcaram para a Suécia. Ao menos na estreia, porém, o
que se viu foi uma seleção quase integralmente branca, por medo de repetir o
fiasco – sobretudo emocional – das Copas anteriores.
“O psicólogo, dr. Carvalhaes, havia dito que eu e o Garrincha
éramos muito jovens, porque a gente vivia fazendo brincadeira,
molecagem”, relembraria Pelé, meio século depois.
A fórmula caiu por terra após o empate por 0 a 0 com a Inglaterra.
Por influência direta de Didi, Feola levou para o time os negros Pelé e Zito, o
índio Garrincha e o nordestino Vavá. Na final, contra a Suécia, outro negro
apareceria como titular, Djalma Santos. Estava completo o time que entraria
para a história como o do primeiro título mundial do futebol brasileiro. O trio
Pelé, Garrincha e Vavá foi responsável por 11 dos 13 gols da seleção na
última partida da primeira fase e nos três duelos eliminatórios.
“Eles eram infernais. Ninguém os conteria. Se você marcasse o
Pelé, Garrincha escapava e vice-versa. Se você marcasse os dois, o Vavá
entraria e faria o gol. Eles eram endemoniados”, resignou-se Just Fontaine,
artilheiro da França, na coletiva depois da semifinal, que terminou com
vitória brasileira sobre os franceses por 5 a 2.
Endemoniados, não amarelos.
Estraído d "Guia Politicamente Incorreto do Futebol", de Jones Rossi e Leonardo Mendes Junior, Editora Le.
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