O ar da cidade
É noite. O sol impiedoso que nos havia castigado durante o
dia cede lugar a um frio cruel. Estamos sentados ao redor de uma fogueira
alimentada por esterco e seixos. Depois de forrar o estômago com xícaras de chá
e tâmaras secas, sou convidado pra um espetáculo inusitado. Um temível
escorpião é capturado vivo e atirado dentro de um círculo de fogo.
Sorrindo, me explicam que o os escorpiões tem o estranho hábito
d esse matar com o próprio ferrão quando aprisionados pelas chamas. Mas não foi
o caso desse, que para irritação geral se recusava a confirmar a regra. Um beduíno,
cansado de esperar, empurrou o infeliz o meio dos chamas. As areias do deserto,
indiferentes, testemunham a aflição do aracnídeo. Percebendo o meu inconformismo
ao não entender o que leva uma pessoa a
agir daquela maneira, a observação do
chefe da caravana é esclarecedora. A cidade está a um dia de viagem e logo não só
o beduíno, mas todos estaremos contaminados pelo sus ares.
Olhos brilham de prazer com o sofrimento do escorpião.
Prazer idêntico das crianças europeias da idade Média cujo passatempo predileto
era a inocente brincadeira de queimar gatos nas noites de São João> Os
miados de dor eram associados aos gritos das feiticeiras assando durante a
inquisição.
“Tu castigarás de morte aqueles que usarem de sortilégios e
de encantamentos”. (Êxodo, 22,18).
Como resultado desse versículo, a Espanha do cardeal Ximenes
e da piedosa Isabel, aquela que patrocinou a viagem de Colombo, começou a
queimar as mulheres acusadas de feitiçaria. Nem as parteiras escaparam. A
cidade suíça de Genebra, governada por um bispo, queimou quinhentas mulheres em
três meses. O bispado de Bamberg manda para a fogueira seiscentas pessoas e o
de Wutzbourrg novecentas. Na Alemanha foram sacrificadas mais 1000.000. O
parlamento da cidade francesa de Toulouse põe de uma só vez na fogueira
quatrocentos corpos humanos. Ainda na França, o juiz Remy de Nancy em seu livro
dedicado ao cardeal de Lorena, afirma que a justiça dele era tão boa que havia
queimado oitocentas feiticeiras em dezesseis anos. Vangloriava-se de que muitas
delas, temendo sua justiça, haviam se matado antes de ir a julgamento.
Voltando a Espanha, as convenções de judeus e muçulmanos não
eram suficientes. Além de usar marcas em suas roupas, eram obrigados a pendurar
nas portas de suas casas ou sobre os telhados pedaços de carne de porco, animal
considerado impuro por suas religiões. Quando a Espanha entregou o estreito de Gibraltar
aos ingleses em 1713, a cláusula X do
Tratado de Utrecht estipulava que os
ingleses de maneira alguma poderiam permitir que judeus e muçulmanos ali
fixassem residências.
Filhos do patriarca Abraão, judeus e muçulmanos sempre
viveram como irmãos. Hoje, instigados pelo Ocidente, se matam.
Deve ser o ar da cidade.
Georges Rourdoukan é jornalista e escritor; autor de A
incrível e Fascinante história do Capitão Mouro e de O Peregrino, Editora Casa
Amarela.
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