O JARDIM EM FRENTE- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


O JARDIM EM FRENTE
Os big-shots da empresa estavam reunidos em conferência. Assunto importante,
desses que exigem atenção, objetividade. O presidente recomendara:
— Não estamos para ninguém. Essa porta fica trancada. Avisem a telefonista
que não atenda a nenhum chamado. Nem do papa.
Começou-se por dividir o assunto em partes, como quem divide um leitão.
Cada parte era examinada pelo direito e pelo avesso, avaliada, esquadrinhada,
radiografada. Cartesianamente.
— Você aí, quer fazer o favor de parar com essa caricatura?
O presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi advertido pelo vice:
— E você, meu caro, podia deixar de bater com esse lápis, toc, toc, toc, na
mesa?
Estavam tensos, à véspera de uma decisão que envolvia grandes interesses.
Alguém bateu à porta.
— Não respeitam! Não respeitam o trabalho da gente! Isso não é país!
Seja ou não seja país, quando batem à porta a solução é abrir, para evitar novas
batidas, ou, mesmo, que a porta venha abaixo. Pois ninguém deixa de bater, se
sabe que tem gente do outro lado.
O diretor-secretário abriu, de óculos fuzilantes. O chefe da portaria, cheio de
dedos, balbuciou:
— Essa senhora… essa senhora aí. Veio pedir uma coisa.
O primeiro impulso do diretor-secretário foi demitir imediatamente o chefe da
portaria, servidor antigo, conceituadíssimo, mas viu ao mesmo tempo diante de
si a imagem consternada do homem e a lei trabalhista: duas razões de clemência.
Pensou ainda em mandar a senhora àquele lugar de Roberto Carlos ou a outro
pior. Dominou-se: ela ostentava no rosto aquela marca de tristeza que amolece
até diretoria.
— A senhora me desculpe, mas estou tão ocupado.
— Eu sei, eu é que peço desculpas. Estou perturbando, mas não tinha outro
jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício em frente. Meu canário…
— Fugiu e entrou aqui no escritório? Eu mando pegar. Fique tranquila.
— Antes tivesse fugido. Morreu.
— E daí?
— Viveu quinze anos conosco. Era uma graça… Pousava no dedo…
— E daí, minha senhora?
— O senhor vai estranhar meu pedido… Eu estava sem coragem de vir aqui.
Por favor, não ria de mim.
— Não estou rindo. Pode falar.
— Os senhores têm um jardim tão lindo na cobertura. Da minha janela, fico
apreciando. Então agora está uma coisa. Posso fazer um pedido?
— Pode.
— Eu queria enterrar o meu canário no seu jardim. Lá é que é lugar bom para
ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele terrenão ao lado do edifício, com
três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é grande demais para um passarinho,
falta intimidade. Se o senhor consente, eu mesma abro a covinha. Não dou o
menor trabalho, não sujo nada.
O diretor-secretário esqueceu que tinha pressa, que havia um problema sério a
discutir. Que problema? Naquele momento, o importante, o real era um
canarinho morto, e amado.
— Pois não, minha senhora, disponha do jardim. Eu mesmo vou levar a
senhora lá em cima, para escolher o lugar.
Subiram, escolheram o canteiro mais apropriado, onde bate sol pela manhã, e à
tarde as plantas balançam levemente, à brisa do mar.
— Não é abuso eu fazer mais um pedido? Queria que o jardineiro não
revolvesse a terra neste ponto, durante três meses. O tempo de os ossinhos dele
se desfazerem… Volto daqui a meia hora, para o enterro.
Meia hora depois, voltava com uma caixinha forrada de veludo azul-claro, e a
reunião dos big-shots, que ainda durava, foi suspensa para que todos, com o
presidente muito compenetrado, assistissem ao sepultamento.
06/10/1967
Extraído do livro; 7o Historinhas, de Carlos Drummond de Andrade

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