A pandemia e a "Seca de João Miguel"


Essa pandemia me faz lembrar a “Seca de João Miguel”.
Não custa lembrar o fato que levou a terrível seca de 1932 a ficar conhecida como Seca de João Miguel.
A seca de 1932 foi uma das piores que o Nordeste brasileiro já sofreu, somente comparável às de 1877/1879, 1915 e 1919.
O capitão João Miguel foi o idealizador de um desastrado plano do governo posto em prática naquele ano. A polícia baiana acreditava que desse modo faria da seca uma arma contra Lampião.
Porém, para o povo, esse plano foi um mal infinitamente pior do que a seca. O tal plano, que visava privar os cangaceiros do apoio dos sertanejos, foi imaginado pelo capitão João Miguel da Silva, que estava então no comando das forças contra o cangaço na Bahia. A ideia era levar toda a população dos sertões atingidos pela seca para as cidades e vilas maiores. Com isso, dizia João Miguel, os cangaceiros perderiam contato com os coiteiros e, sem mantimentos, isolados nos matos, teriam de se entregar à polícia ou então seriam facilmente dizimados pelas volantes.
O plano foi exposto pelo próprio João Miguel em Jeremoabo, numa reunião com oficiais e autoridades civis. A reunião foi na casa do coronel Jesuíno Júnior (coronel Zizu, irmão de João Sá). Dentre os figurões presentes, destacavam-se João Facó, secretário de Segurança da Bahia, o Dr. Raimundo Paranhos, juiz de direito, Bento Nolasco de Carvalho, prefeito (intendente) de Jeremoabo, Manoel Martins de Sá, candidato a prefeito, e os coronéis Antônio Lourenço Júnior e Zacarias Lourenço de Carvalho.
João Facó achou brilhante a ideia de João Miguel e submeteu o plano ao interventor federal no Estado, Juracy Magalhães, que o aprovou. Surgiu, porém, um problema: quando Juracy levou a proposta ao interventor de Sergipe, Augusto Maynard, sugerindo que este adotasse as mesmas medidas em seu Estado, as autoridades sergipanas não concordaram. Então a Bahia implantou o programa sozinha. As famílias foram obrigadas pela polícia a deixar suas casas, sítios ou fazendas e levadas para as cidades ou vilas determinadas pelas autoridades, onde eram largadas ao léu, pois não havia abrigo nem alimentação para todas as pessoas – os mentores da ideia tinham-se esquecido de prever e adotar as mais comezinhas providências.
A operação foi um fiasco histórico. O desastre só não foi maior porque em muitos lugares as autoridades não seguiram à risca a orientação oficial. Porém cidades como Jeremoabo, Bom Conselho (Cícero Dantas), Antas, Paripiranga, Bebedouro, Bonfim, Uauá e Juazeiro, onde a coisa foi levada a sério, ficaram atulhadas de gente vinda das caatingas à força por ordem da polícia. Cerca de 12.000 pessoas foram postas para fora de suas próprias casas. Estima-se que em abril havia, só em Jeremoabo, mais de 4.000 retirantes. Como o governo não dispunha de recursos para prover as necessidades básicas de tanta gente, as pessoas tiveram de valer-se de todos os meios possíveis para sobreviver, procurando as casas de parentes ou amigos, e em último caso pedindo esmolas. Não havia abrigo para todos, e os desalojados ficavam nas igrejas ou debaixo das árvores, famintos, sujos, esmolambados. Não havia banheiros nem dependências sanitárias. Resultado: as cidades tornaram-se verdadeiros chiqueiros. A concentração de muita gente em locais sem as necessárias condições sanitárias deu origem a doenças epidêmicas. Se alguém tivesse uma necessidade imperiosa de ir à própria casa, tinha de pedir permissão às autoridades e, sendo autorizado, só podia ir acompanhado de um guarda. Depois, passou a ser preenchido um salvo-conduto, com o nome da pessoa, o local onde estava e para onde ia, o motivo da viagem, o prazo para retornar. E aí a confusão foi total, porque eram muitas as solicitações, nem sempre atendidas, e não havia como controlar se os autorizados cumpriam os prazos de retorno.
A polícia espalhou cartazes pelos sertões concitando os cangaceiros a se entregarem e garantindo que suas vidas seriam poupadas. Consta que três cangaceiros se entregaram, em maio, porém por motivos que não tinham relação com a seca, já que, afora o problema da gravidez das mulheres, Lampião não estava passando por problemas.
As autoridades permitiam que os fazendeiros enviassem seus vaqueiros, de dias em dias, acompanhados de um guarda, para tomar alguma providência com o gado. Porém, sem água e sem pastagens, os vaqueiros praticamente se limitavam a contar quantas reses já tinham morrido para relatar a situação aos seus patrões.
Por volta de outubro, a polícia começou a afrouxar os controles, deixando que as vilas menores também pudessem concentrar refugiados. Depois, os grandes fazendeiros conseguiram permissão para que os seus vaqueiros pudessem ir tomar conta do gado que ainda estivesse vivo.
Em dezembro, alguns lugares como Curaçá e Patamuté começaram a relaxar o policiamento, e as pessoas puderam voltar para suas casas.
Billy Jaynes Chandler comenta que, enquanto Juracy Magalhães e as outras autoridades baianas procuravam manter a aparência de que o programa tinha obtido resultados satisfatórios, atribuindo suas falhas ao fato de Sergipe não ter cooperado, o fracasso foi um fato reconhecido por todos, embora a imprensa local não pudesse noticiar isso, devido à censura, que era muito severa no período em que Juracy foi interventor federal.
Porém, quando os jornais de outros Estados começaram a denunciar aquela infâmia, as autoridades baianas admitiram que o plano tinha fracassado e fizeram cessar o confinamento do povo. Rodrigues de Carvalho comenta: “Só então o interventor, outra inteligência de camondongo e sensibilidade negativa, assusta-se, porque era conivente no infame e criminoso plano e manda suspender a monstruosidade. Contudo a desgraça já estava feita. Os males causados a uma população inteira eram irreparáveis”.
O capitão João Miguel foi destituído do comando das forças que combatiam Lampião. Só isso. Os sertanejos não tinham a quem se queixar. Entregavam tudo a Deus.
Ranulfo Prata, ao falar dessa insensatez sem limites, registra que as populações sertanejas já haviam padecido todos os males imagináveis – a seca, a politicagem, o mandonismo... –  mas não conheciam ainda aquela forma nova de angústia: ser enxotadas do seu lar, repentinamente, a coronhadas e pontas de sabre.
O certo é que, com toda essa trapalhada do governo, o povo do sertão sofreu horrores, enquanto que com relação a Lampião os problemas com a seca foram enfrentados naturalmente, como um fenômeno ao qual ele estava acostumado, de modo que o plano de João Miguel não significou praticamente nada para os cangaceiros. Como as medidas do governo se restringiam às regiões do sertão, Lampião passou a maior parte do ano de 1932 noutras áreas da Bahia ou em Sergipe, Estado onde a seca era menos intensa e não havia concentração do povo nas cidades.
Poucas vezes na história da humanidade alguém teve uma ideia tão desastrada como essa de João Miguel. Como a polícia, em vez de ir atrás dos cangaceiros, tinha estado atarefada o ano todo em tomar conta dos matutos nas vilas e cidades para evitar que eles voltassem para suas casas, pode-se dizer que 1932 foi para Lampião um ano de descanso. Durante o dia, os cangaceiros caçavam, jogavam baralho, bebiam cachaça ou simplesmente dormiam, e de noite faziam festas, dançavam até o amanhecer ao som de velhas sanfonas – se havia mulheres, dançavam com mulheres, se não havia, dançavam uns com os outros.
Os cangaceiros não mudavam a rotina de suas vidas nem quando estavam sendo perseguidos pela polícia. Mesmo em situações difíceis, ficavam às vezes jogando baralho até tarde da noite. O vício do jogo era de tal ordem que alguns cangaceiros chegavam a jogar nos intervalos entre um tiroteio e outro.
Era assombroso o consumo de cachaça no bando. As festas eram movidas a xaxado, cachaça e confusão. Só Lampião não fazia extravagâncias. Não era viciado em jogo, embora jogasse muitas vezes, apostado, geralmente um jogo de cartas chamado “31”, e quando perdia ficava danado da vida, mas pagava – houve situações em que perdeu muito dinheiro, até 15 contos de réis, e pagou. Lampião comia pouco e era comedido ao beber. Preferia bebidas leves, especialmente conhaque e genebra. Porém alguns cangaceiros passavam dos limites. Corisco, por exemplo, bebia tanto que chegava a perder os sentidos.
(Comentários adaptados a partir de capítulo do meu livro “Lampião – a Raposa das Caatingas”. Peço que se alguém utilizar esse texto por favor  cite a fonte: José Bezerra Lima Irmão, “Lampião – a Raposa das Caatingas”, 4ª ed., Salvador: J.M Gráfica, 2018, o. 434-435.)

Comentários

AO ACESSAR ESTE BLOG VOCÊ TENHA O PRAZER DE SE DEPARAR COM AS COISAS BOAS DA NOSSA TERRA! OBRIGADO E VOLTE SEMPRE!