A VENDA DA FAZENDA - PARTES 2 e 3 - LEMBRANÇAS - POR ANA MARIA COELHO CARVALHO

 


A venda da fazenda     Parte 2: Lembranças


 Com a decisão tomada de vender a fazenda Olhos D'Água, seguiram-se os trâmites normais: avaliação, contato com corretores, divulgação, documentos,  impostos , etc.  A essa altura, o Zé já tinha falecido e na partilha, a fazenda tinha ficado para mim, pois nenhum dos seis filhos teria condições de cuidar (e nem eu). Essa parte técnica foi trabalhosa, mas não tão difícil quanto a parte sentimental. 

 Ficou aquele sentimento de nostalgia pelos bons momentos que toda a família passou durante os dez anos que sempre íamos na fazenda, e que não voltariam mais . As lembranças do Zé: sentadinho na varanda, olhando feliz a chuva que vinha chegando ao longe.  No meio da pastagem, que parecia um jardim, olhando orgulhoso os bois gordos e sadios, sem nenhum carrapato. No curral, batendo um papo sem pressa, com os funcionários. Ou bebendo  leite quente e espumante com conhaque, tirado na hora das tetas da vaca. Na oficina, orientando sobre o conserto dos tratores, que estragavam sem parar.  Na mesa grande da varanda, cercado pelos filhos e netos, saboreando a galinha caipira que tanto gostava. Ou então o miolo de porco em cima do arroz quentinho. Uma vez ele também comeu omelete de aleluia. Deu uma invasão desses insetos na fazenda, eram atraídos pela chama do fogão e entravam na comida como ingrediente. As lembranças dos filhos: o dia em que o Luiz Cláudio decolou da fazenda em seu paramotor e sobrevoou a Cachoeira do Manteiga. Os habitantes olhavam curiosos quando o vento mudou de direção e ele fez um pouso forçado. Ficou na história da cidadezinha. As competições de tiro ao alvo e as caçadas com espingarda de chumbinho. As pescarias com uma parafernália de fazer inveja a qualquer pescador, mas eles não pescavam nada. As lembranças dos netos e netas: os passeios a cavalo, os piqueniques debaixo das gameleiras gigantes; os netos empoleirados no curral olhando o gado, nadando na prainha do rio Paracatu, brincando na casinha de boneca e na piscina de plástico debaixo do pé de jabuticaba.  A Maíra, a netinha de 9 anos que queria um porquinho de estimação. Mas ele fugiu do tambor, onde ela lhe passava a mão  para domesticá-lo, e saiu numa carreira desenfreada pelo pasto afora. Foram muitas lágrimas de desespero, sem saber se ele saberia voltar para o chiqueiro. No dia seguinte, fomos as duas contar os porquinhos. Tinha doze como antes, ele estava lá sim, com os irmãozinhos, todos iguais! A Vitória,  filha do encarregado, amiga inseparável das netas. O Moisés, que caia em prantos quando ia embora, queria morar na fazenda...O Pedro, que um dia caiu do cavalo, ficou muito assustado e passou um bom tempo sem montar novamente. A Lia, que lá nos States fez um curso sobre como cuidar de cavalos. Fez trança em cascata na crina do Algodão e ele ficou todo garboso. As lembranças do Cookie, o cachorro perdigueiro de estimação que estraçalhou todas as galinhas d'angola da fazenda. Da Dama, a cachorra da cidade que sempre ia com o meu filho, dentro da sua gaiolinha. Certa vez ela desapareceu e passamos  parte da noite no pasto gritando por ela. Apareceu no outro dia, esfomeada. E muitas outras lembranças: o céu tão estrelado, o pôr do sol tão lindo, as flamboyans floridas, o queijo fresco e o leite gordo, os pés de mangas suculentas, os pirilampos que certa vez apareceram na casa à noite, ficando centenas de luzinhas acesas por todo canto (mas também aparecia escorpião, minha filha foi ferroada).  A ternura e o cuidado das vacas cuidando dos bezerrinhos novos e o encanto de cada nascimento.  A boiada vigorosa trotando na frente da casa e levantando poeira. A majestade e a placidez do rio São Francisco, o velho Chico. As aventuras a cada travessia na balsa...

  Pensando em tudo isso, lembrei-me daquela história de um amigo do poeta Olavo Bilac. Ele queria vender um sítio que lhe dava muito trabalho e despesas.  Pediu então ao poeta para redigir o anúncio da venda. Bilac escreveu: "vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros ao amanhecer. É cortada por cristalinas e refrescantes águas de um ribeirão. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes na varanda". Meses depois, o poeta encontrou-se com o amigo e perguntou-lhe se ele tinha vendido o sítio. O amigo respondeu que nem tinha pensado mais nisso, depois que viu a maravilha que ele tinha.

 Deu vontade de desistir da venda da fazenda também. Mas sem o Zé, não teria mais sentido continuar. Melhor pensar como naquela poesia: "que esta minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço...porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade." 


  A venda da fazenda-  Parte 3


Bem, além da parte técnica e das lembranças, havia outros problemas. Por exemplo, o que fazer com a vaca da Lia e o boi do Enzo? E com o Cookie? E com os cavalos dos doze netos? E com todo o maquinário da fazenda, que eu não sabia nem o nome e nem pra que servia? 

 Começando pela vaca, a Daisy (Margarida, em português). A Lia, minha netinha americana de 10 anos, economizou a sua mesada em dólares durante um bom tempo. Vendeu muito bolo e limonada na porta da sua casa, para conseguir o dinheiro para comprar uma novilha do Zé (dar, ele não dava, todo neto iria querer). Ela sonhava com o dia em que a novilha se transformaria em uma vaca e daria  bezerros. Na fazenda, a Dayse foi marcada com o nome "Lia" em letras garrafais e foi crescendo forte e saudável. Quando a Lia soube que a fazenda seria vendida, entrou em desespero. Não queria vender a novilha e para onde ela iria? Consolei-a dizendo que a levaria para outra fazendinha lá perto, que não seria vendida. Em janeiro agora, no dia de contar, pesar  e vender o gado, a Lia estava na fazenda comigo. Começamos então a planejar o transporte da Daisy, dos cavalos Pocotó da Maíra e do Picolé, do netinho Breno. E de duas vacas bonitonas pra fazerem companhia pra Daisy. E do boizão também, aquele que não entrava no caminhão, queríamos salvá-lo. Mas, se ele não entrava, como iria? No final, deu tudo errado, pois não morava ninguém na fazendinha e ficamos preocupadas de todos morrerem ou serem roubados. Assim, pedi ao senhor que comprou a fazenda para deixar a Daisy lá mesmo e ele concordou, dizendo que cuidaria bem dela. Agora a Lia está feliz, esperando os bezerros. 

 Quanto ao boi do Enzo, o irmão de 12 anos da Lia, aconteceu uma tragédia. O Enzo cortou muita grama dos vizinhos, lá na Califórnia, e varreu muita folha das calçadas. Economizou e comprou um garrote do Zé por mil e duzentos reais, há cerca de um ano atrás. O garrote também foi marcado com o nome  "Enzo" em letras grandes, então era inconfundível.  O vi em setembro passado, quando foi pesado. Estava ótimo e pesando 349 kg. Em novembro, estava separado dos outros, em recuperação de um pé machucado. Quando o Enzo soube que a fazenda seria vendida, financista como ele é, decidiu logo que queria o dinheiro do boi (nem nome ele tinha). Assim, como o Enzo também estava na fazenda na época da venda, passou a acompanhar todos os lotes de gado que passavam pela balança, para ver quanto receberia pelo boi. Em dois dias, passaram todos: boi gordo, boi magro, vaca leiteira, vaca boiadeira, vaca solteira, garrotes, novilhas, etc. Mas o boi do Enzo não passou. Consternação geral. Onde estaria? Saíram todos os funcionários procurando.  Foi encontrado morto, mortinho, perto de uma cerca. Comentei com a Lia que fiquei com muita pena do Enzo. Ela respondeu que ficou com pena foi do boi...

 Quanto aos cavalos, foi uma negociação extenuante.

Comentários

  1. Aprendi muita coisa! Você escreve deliciosamente bem! Próxima, muito próxima de nós, os leitores.

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