VIRGEM DE PÍLULA - CONTO DE TIAGO DE MELO ANDRADE

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 VIRGEM DE PÍLULA

 Dê licença de eu contar sobre a velha inoxidável Lilica Varela e seu formidável sistema imunológico. Era a velhota a primeira estranheza humana parida em Campos de Marcela, pois antes dela, no reino dos bichos e das plantas, os deslizes aconteciam havia tempos. Como o caso da onça com focinho de tatu, fotografada por um naturalista inglês, nos idos 1800. Ou ainda, afundando mais no tempo, em 1600, como o relato da abóbora gigante que atropelou o bandeirante Boanerges Calapão e sua súcia de colonizadores num terrível acidente, atrasando o povoamento da região em, no mínimo, duzentos anos. E, girando mais os ponteiros para a direita, nos dá seu testemunho especial pintura rupestre, ilustrando que nos tempos da roda quadrada existiu um estranho mamute de seis pernas. Em caso de gente humana, a natureza errava menos. Até o presente momento, há notícia de quatro apenas: Lilica Varela, que não ficava doente; Jacqueline Noronha, possuidora de três tetas; as gêmeas inseparáveis; e o Tarado Benquerido, fulaninho equipado com aleijão especial de dar prazer. Em se tratando de Lilica, sucedeu o seguinte: A boca noturna havia acabado de chegar e cuspir suas estrelinhas sobre Campos. Era uma daquelas noites quentes de verão: ar morno e estático. Os insetos não gostam do calor. Os primeiros a reclamar eram os grilos, roçando as perninhas de serrote umas contra as outras, enquanto dançavam ao som da própria música, numa estranha e acrobática cerimônia chama-chuva. Ao ritual se somavam, mais tarde, as baratas, bailando tontas pelo ar, inebriadas pelo vapor asqueroso que o calor no esgoto exala. E sempre havia de comparecer uma ou outra cigarra insone e encalorada que mais um acorde acrescentava à pajelança dos insetos para atrair água. Dr. Guedes vinha pela praça, trazendo orgulhoso, no bolso do jaleco, uma cobra enrolada num bastão. Tão excitado estava que nem sequer notou a pantomima dos insetos. Metido em seu traje quarado de médico, diretor e fundador da Santa Casa de Misericórdia, esfregava as mãos peludas de contentamento, enquanto pensava na cara de gramofone da velha Varela: “Finalmente a centenária vai cair nas garras da medicina!”. Fora chamado em seu gabinete por Concórdia, uma das muitas filhas de dona Lilica Varela, criatura que zombava e fazia pouco da raça orgulhosa e soberba dos médicos. Cem anos, e nunca jamais pisou chão de hospital ou amassou os fundilhos em cadeira de gabinete de doutor. À farmácia só ia para comprar água de cheiro e creme dental, que mesmo pessoa dotada de saúde perfeita exala maus odores pelas vias ordinárias. Dr. Guedes não se conformava com o bem-estar perpétuo que gozava a matrona em conserva. Querido e respeitado por muitos de quem a vida salvara, para a matriarca era o mesmo que um nada. – Doutor... Doutor... Como é que se chama mesmo? – Guedes. Doutor Guedes. – Vai chamar, Concórdia, vai chamar... O que mais incomodava o médico, contudo, não era o desprezo, mas o ar de superioridade de Lilica. Aquele mesmo ar que os médicos apreciam fazer diante dos pacientes ignorantes de suas doenças e males... Aquele minutinho de silêncio que o clínico faz depois de desfiado o rosário de sintomas, antes de proferir o veredicto-diagnóstico, às vezes inapelável e sem recurso... Lilica tinha exatamente essa cara de “sei o que se passa” o tempo todo. Mas, naquela noite quente, a fortaleza parecia ter ruído; finalmente a velha ia apelar para a medicina, dar-lhe a devida importância! Nunca mais havia de encher a boca amarrotada para, esnobe, dizer: – Nunca fui ao médico. Ou ainda denunciando conspiração: – Remédio jamais tomei, de qualquer tipo! É por isso que tenho saúde! Sabe o que é? Esses médicos e as indústrias de remédio são sócios na patifaria... O médico adoece o paciente e a farmácia vende o remédio! Igual essa tal de Aids, uma doença que surgiu do nada! Pois se nem em Sodoma e Gomorra, em que o povo praticava o esporte em diversas modalidades, nasceu peste brava assim! Foi preciso Deus acabar com a festa deles no calor do fogo... Sempre havia alguém para ponderar e defender o povo dos remédios e seus cientistas: – A Aids veio dos macacos, bisa. Era o mesmo que cutucar a onça com vara curta. A resposta vinha lubrificada com espuma raivosa: – Raça ordinária essa dos cientistas. Além de inventarem a doença, colocaram a culpa no rabo do macaco. Dr. Guedes entrou por um portão lateral e achou a anciã sentada numa cadeira de balanço, num avarandado nos fundos da casa. Cadeira reforçada com dois parafusos de aço, para suportar o peso ancestral. Era gorda a danada, do tipo fofa, bochechas redondas, tesas, bem grudadas na cara e saudavelmente rosadas. Aspecto que humilhava mais ainda o clã da cobra trepada no pau e seus caderninhos de estatísticas. Como podia uma gorducha daquela tonelagem, comedora de gorduras e confeitos, terror dos doces em compota e difamadora dos exercícios físicos, colher todos os lauréis que a medicina quer dar aos magros, aos dietéticos, aos atletas?... Cem anos, untados na banha de porco e polvilhados com açúcar refinado! Um ultraje aos artigos científicos! O médico dissimulava, atrás da cortina do bigode, o sorriso comemorativo daquela noite gloriosa em que, pelo esôfago centenário, havia de transitar a primeira pílula! Quiçá, no sentido inverso, abre-alas para os medicamentos todos, um substancioso supositório! E, já abrindo a maletinha preta com suas coisinhas de auferir, medir e espetar, perguntou em voz grave, como que saída dum fundo de cova: – Mandou me chamar, dona Lilica? O que a senhora está sentindo? – inquiriu, ansioso de medir a pressão, meter o termômetro no entre das banhas, auscultar o coração... – Eu não estou sentindo nada, não, doutor. Estou como nasci. A decepção profunda tem sintomatologia parecida com a do envenenamento. Dr. Guedes esfriou mais que picolé no freezer ao ouvir o “Estou como nasci”. Adveio então aquele mal-estar súbito: tendões e nervos endurecidos e o ar estacionado a meio caminho dos pulmões. A pessoa sofre uma espécie de paralisia, a boca entreabre e o padecente fica com cara de bolo saído do forno antes da hora. Num átimo, percorreu a mente do médico a ideia estranha de o mundo ser composto apenas por inquebrantáveis Lilicas Varelas, sem sentido nenhum para a medicina, quem sabe até para a ciência... Teve a catatonia filosófica interrompida pela voz firme de quem tem certeza de tudo o que dirá: – Os insetos estão inquietos... Vejo que o senhor não trouxe o guarda-chuva. Vai se molhar na volta à Santa Casa. O médico apenas olhou silente para o céu estrelado acima de sua cabeça, o que bastou para desfeitear a previsão da velha, e, impaciente, tomou grosseiro essa satisfação: – Se a senhora goza tão boa saúde, por que me chamou até aqui? – Para lhe ajudar, doutor. Eu soube que, a pedido do prefeito Dedé do Palmito, o senhor está pondo em relato a história do município... – Verdade. Estou escrevendo sobre nossa cidade... Na falta de um, estou à guisa de historiador... Lilica achava que, por ser a primeira pessoa nascida em Campos, merecia página de destaque no tal livro e desandou a narrar a história de sua feitura e inauguração. A velha pouco se importava com a cara azeda do doutor. Com enorme prazer, descascou e enfiou o abacaxi de sua história nos ouvidos impacientes do dr. Guedes, que chegou pensando em colocar um supositório e acabou levando um ananás tamanho grande.

Tiago de melo Andrade, em CarneQuebrada e o Elixir Misterioso - Editora Melhoramentos

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