A cangaceira Aristéia - Texto de Gilmar Teixeira

 


Aristeia, a Cangaceira que Encontramos por Acaso

A vida tem dessas surpresas que parecem saídas de um roteiro de cinema. Algumas delas, no entanto, são tão improváveis que nem o mais talentoso roteirista ousaria escrever. Foi assim que, em meio a uma pesquisa despretensiosa na antiga Usina de Angiquinho, eu, Gilmar Teixeira, e o escritor João de Sousa Lima, tropeçamos em um capítulo perdido da história do cangaço: o encontro inesperado com a cangaceira Aristeia.

Estávamos ali à procura da marca que o coronel Delmiro Gouveia deixava em todos os seus empreendimentos, um detalhe peculiar que um pesquisador inglês nos garantira existir. O vigilante da usina, pago por esse estudioso estrangeiro, de fato a havia encontrado e nos chamou para ver a descoberta. Enquanto examinávamos a inscrição nas paredes do cânion do São Francisco, um homem que nos acompanhava soltou uma frase que fez o tempo parar:

— Minha mãe foi cangaceira.

Por um momento, nos entreolhamos, atônitos. João de Sousa Lima, um dos maiores pesquisadores do cangaço, levou um susto genuíno e, quase que num reflexo, quis saber imediatamente onde ela estava.

— Ali, em minha casa. É logo aqui do lado, no Jardim Cordeiro.

A oportunidade era rara, daquelas que não se desperdiçam. Seguimos com ele sem hesitar e, em poucos minutos, estávamos frente a frente com Aristeia, uma mulher franzina, de olhos fundos e expressão marcante. Embora a idade já pesasse em seus ombros, sua memória permanecia intacta. O passado estava vivo em sua fala, em suas lembranças que fluíam como um rio de águas revoltas.

Começamos a gravar sua história ali mesmo, sem perder um segundo. Cada detalhe era uma preciosidade, cada palavra, um pedaço da história do sertão. Nos dias seguintes, nossa relação com ela e sua família se estreitou. Em um gesto de generosidade, nos convidou para conhecer sua terra natal, no sertão de Canapi, onde Benjamin Abraão registrou algumas das mais icônicas imagens de Lampião e seu bando.

Aristeia não romantizava o cangaço. Pelo contrário, dizia com todas as letras que aquilo era uma “vida de cão”, de miséria e sofrimento. Não guardava saudade, apenas as lembranças de um tempo difícil que nunca quis reviver. Talvez por isso alguns pesquisadores não lhe dessem o devido valor, pois ela não contava o que queriam ouvir. Não exaltava heróis nem alimentava mitos. Mas era justamente essa honestidade que tornava sua narrativa tão valiosa.

Entre risos e lágrimas, descrevia o cheiro dos perfumes usados pelos cangaceiros, a comida que preparavam com surpreendente destreza, os medos constantes, as fugas, o calor escaldante da caatinga. Seu corpo marcado pelo tempo era testemunha de uma história que não se lê nos livros, mas que se carrega na pele, na voz, no olhar.

Com o tempo, Aristeia ganhou reconhecimento. Graças ao trabalho incansável de João de Sousa Lima, sua história virou livro, documentário, foi levada a eventos sobre o cangaço em diversas partes do Brasil. Ela, que por tanto tempo vivera à margem da história, tornou-se uma peça fundamental para entendermos melhor esse período tão controverso do sertão nordestino.

Aristeia nos deixou, mas sua memória permanece viva. E eu, que naquele dia fui apenas um curioso pesquisador à procura de uma marca de Delmiro Gouveia, acabei me tornando testemunha de um reencontro improvável com a história. Às vezes, é assim que o destino brinca conosco, cruzando caminhos que jamais imaginaríamos percorrer.

Fica a saudade, Aristeia. Que agora descanse em paz, livre da dureza do tempo e das dores do passado.

* Gilmar Teixeira

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