QUENGA - POR DEONÍSIO DA SILVA

 

QUENGA
Deonísio da Silva *
A palavra quenga foi trazida por negros tornados escravos que falavam banto, língua africana na qual "kienga" designa a metade do coco já sem o cabaço, outro nome da polpa, servindo de recipiente, vasilha conhecida também por cabaça.
A moça, ao deixar de ser virgem, foi comparada a essa cabaça sem cabaço (com mudança de gênero e de significado), que em Portugal não é palavrão. A palavra "cabaço" aparece no nome de vários vinhos portugueses e é também apelido e sobrenome. No português do Brasil, cabaço é palavra chula, tida por obscena. Em Portugal, não.
No ciclo do açúcar, no Nordeste, a ex-virgem, se não casasse, "caía na vida", virava quenga e o povo usava a palavra indecorosa, obscena e chula para designar o que a donzela perdera, identificado na língua culta por hímen, do grego "hymen", membrana, cujo étimo está também em Himeneu, deus das bodas e protetor dos matrimônios.
No centro do Rio, havia (não sei se haverá ainda) o Bar das Quengas, distante de onde navegavam os marinheiros que descobriram o Brasil. Um deles estava de castigo na cesta da gávea, posta no caralho, outro nome de um dos mastros do navio, tornado palavrão, de onde ele fez ouvir seu brado retumbante para avisar: Terra à vista.
Vamos a palavras de domínio conexo neste campo de significados. Caralho veio do grego "kharax", haste da videira, pelo latim vulgar "caraculus", depois "caraclu" no português arcaico, consolidando-se como caralho, já então designando, não apenas o apoio das plantas da videira, mas também o mastro do navio. Como, quando e por que as palavras se tornam palavrões são outros quinhentos, de que é exemplo a bolsinha do mito de Pandora, obrigado a mudar de nome para caixa de pandora.
O Brasil foi descoberto da Casa do Caralho. E muitos membros de sua classe dominante são ilustres filhos de bastardos, isto é, gerados por moças expulsas de casa. Mais tarde, os filhos foram acolhidos, mas suas mães, não, como demonstrado na origem da expressão "filho da mãe".
Dom Gaspar de Bragança, ao ser nomeado Arcebispo Primaz de Braga, orgulha-se de ser filho do rei Dom João VII, omitindo, porém, ser filho também da monja Madalena Máxima, amante do soberano. Sua mãe, então, reclama em carta ao filho, reiterando: "você é filho da mãe, não apenas filho do pai". A carta foi resgatada pelo professor e escritor Fernando Venâncio (1944-2025), da Academia das Ciências de Lisboa, autor de "Assim nasce uma língua", dentre outros livros.
A etimologia, ao fornecer o verdadeiro sentido de palavras e expressões, que é apenas o primeiro que teve, dá preciosos indícios da formação de uma língua, no caso o português do Brasil, talvez a melhor herança que Portugal nos deixou.
Diferentemente dos "Bastardos Inglórios", título de um filme famoso, gloriosos bastardos brasileiros estão entre aqueles que fizeram deste país uma grande nação.
Como pequena amostra adicional, no bicentenário da independência do Brasil, em 2022, demos uma olhada nos filhos legítimos e bastardos de Dom Pedro I, o príncipe português que proclamou nossa independência.
Ele teve filhos até com piedosas monjas recolhidas em conventos, constituindo prole numerosa e outorgando às respectivas mães títulos nobiliárquicos importantes, seja de nobreza territorial, quando eram pobres ou apenas remediadas, seja de nobreza simbólica apenas, pois ricas já eram, como foi o caso da Marquesa de Santos.
Portanto, "quod erat demonstrandum", como demonstrado, longe de ser palavrão, a palavra quenga é fresta para entender nossa História.
Evidentemente, quenga designa também a prostituta "tout court", figura atualmente redimida do imaginário popular para designar desjeitoso empoderamento feminino, um tanto diferente do empoderamento europeu, que busca legalizar a prostituição como trabalho decente.
Drummond recomenda: "Chega mais perto e contempla as palavras. /Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível, que lhe deres: trouxeste a chave?".
Pois interroguemos também nós as palavras e perguntemos a cada uma: "trouxeste a chave?". Elas têm muito a nos dizer.
*(O professor Deonísio é doutor em Letras pela USP e autor de "De onde vêm as palavras", editora Almedina, 1.192 páginas, 18a edição. Na rádio BandNews, apresenta a coluna semanal "Sem Papas na Língua")
Leituras Livres (Facebook)
* repost

Comentários

AO ACESSAR ESTE BLOG VOCÊ TENHA O PRAZER DE SE DEPARAR COM AS COISAS BOAS DA NOSSA TERRA! OBRIGADO E VOLTE SEMPRE!