Tráfico humano cresce e exige resposta jurídica interseccional e internacional - Por: Rita Silva (Via email)
Tráfico humano cresce e exige resposta jurídica interseccional e internacional
Por: Rita Silva
O dia 30 de julho, reconhecido como o Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas, é uma data estratégica para reflexão e mobilização da comunidade jurídica internacional. Criada em 2013 pela Organização das Nações Unidas (ONU), a iniciativa tem como objetivo ampliar a conscientização sobre um dos crimes mais lucrativos e silenciosos do mundo contemporâneo. No entanto, para além da simbologia, a data resgata o compromisso assumido pelos países signatários do Protocolo de Palermo, de 2000, que estabeleceu a definição legal de tráfico de pessoas e as obrigações dos Estados em termos de prevenção, repressão e proteção às vítimas.
O tráfico de pessoas, conforme definido no artigo 3º do Protocolo, envolve o recrutamento, transporte, alojamento ou acolhimento de pessoas por meio de ameaça, coação, fraude, abuso de autoridade ou de vulnerabilidade. O objetivo é a exploração, que pode assumir diversas formas: trabalho forçado, exploração sexual, escravidão moderna, tráfico de órgãos e servidão doméstica. Os números divulgados pelo Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), revelam que mais de 50% das vítimas identificadas mundialmente são exploradas sexualmente, enquanto cerca de 38% são submetidas à exploração laboral. Mulheres e crianças representam 75% dos casos, revelando o forte recorte de gênero e faixa etária.
No cenário brasileiro, a gravidade se intensifica. O país é classificado como território de origem, trânsito e destino de vítimas, o que evidencia a amplitude e complexidade do fenômeno. Casos recentes em diversas regiões confirmam essa realidade. No Matopiba, região que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, trabalhadores foram aliciados com promessas de emprego e levados a áreas rurais onde enfrentaram jornadas exaustivas, condições degradantes e ausência de pagamento. No exterior, mulheres brasileiras têm sido atraídas por propostas falsas de trabalho em Portugal e Espanha e, ao chegarem, são obrigadas a trabalhar em prostíbulos clandestinos, com documentos retidos e sob ameaça. Já na fronteira entre Brasil e Bolívia, adolescentes indígenas foram traficadas com falsas promessas de bolsas de estudo e acabaram submetidas à servidão doméstica.
Tais exemplos demonstram que o tráfico humano vai além das fronteiras do Direito Penal. Trata-se de um fenômeno jurídico multidimensional, que exige uma abordagem interseccional, capaz de integrar diferentes áreas do Direito e atuar de forma coordenada entre esferas nacionais e internacionais. O Direito do Trabalho tem papel central na identificação de vínculos empregatícios disfarçados, terceirizações fraudulentas e condições análogas à escravidão. O Direito Internacional dos Direitos Humanos é indispensável para garantir dignidade, integridade física e liberdade das vítimas, além de assegurar o acesso a mecanismos de justiça e reparação. No mesmo sentido, o Direito Migratório é fundamental na regularização da situação das vítimas estrangeiras, emissão de vistos humanitários e acolhimento consular. Já o Direito Administrativo e Constitucional tem a função de cobrar do Estado a formulação e implementação de políticas públicas eficazes e garantir a responsabilização por omissão.
A atuação coordenada desses ramos encontra respaldo também em normas e tratados internacionais. Além do Protocolo de Palermo, destacam-se as Convenções da OIT (nº 29, nº 105, nº 182 e nº 189), a Convenção Europeia de Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU. Em especial, a meta 8.7, que trata da erradicação do trabalho forçado, da escravidão moderna e do tráfico de pessoas. No entanto, o cumprimento dessas normas só será efetivo se houver uma atuação proativa, articulada e sensível por parte dos operadores do Direito.
Nesse contexto, advogados, juízes, promotores, defensores públicos, acadêmicos e gestores públicos têm um papel decisivo. É preciso que estejam capacitados para reconhecer os sinais do tráfico, compreender as especificidades normativas e atuar com base em uma escuta ativa das vítimas. O enfrentamento do tráfico de pessoas demanda mais do que a aplicação fria da norma. Exige sensibilidade às intersecções de gênero, raça, classe, origem e nacionalidade que estruturam as dinâmicas de exploração. O tráfico não é apenas um crime: é uma grave violação dos direitos humanos e um sintoma das desigualdades sistêmicas que atravessam nossas sociedades.
No Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas, é necessário reiterar que esse problema jurídico não pode ser tratado de forma isolada. Ele está inserido nas engrenagens do sistema econômico global e se adapta aos contextos de vulnerabilidade, impunidade, machismo, racismo e xenofobia. Combater esse crime é um dever técnico, ético e humanitário. E, diante desse desafio, o silêncio já não é mais uma opção.
Sobre Rita Silva – Graduada na Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro, a advogada internacionalista é pós-graduada em Advocacia Empresarial Trabalhista – Previdenciária e Previdência Privada e em Seguro Social na Universidade de Lisboa. É Mestranda em Direito Tributário Internacional, especialista em Direito dos Expatriados, Imigrantes e Estrangeiros, Acordos e Tratados Internacionais e Direito de Família Internacional, Direito Internacional Privado, Direito Previdenciário Internacional, Direito do Trabalho com foco em Expatriação, Direito dos Aeronautas com enfoque nas aposentadorias especiais. É palestrante, Escritora, Consultora Jurídica em Legislação Brasileira nos Estados Unidos, Diretora de Relações Internacionais e Embaixadora do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário nos Estados Unidos da América. Presidente da Comissão de Direito Internacional do Instituto IBRAPEJ. É CEO do Internazionale – Grupo de Estudos em Direito Internacional que já conta com mais de 180 advogados em 16 países, fundadora da Comunidade PrevConnection - a 1ª Comunidade de Direito Previdenciário Internacional e Mentora para advogados que queiram internacionalizar suas carreiras. Mais informações: https://ritasilvaadvogados.com
Comentários
Postar um comentário