ERA ASSIM O MEU PEDAÇO DE CHÃO ( I ) - TIBÚRCIO BEZERRA NETO (Im memoriam)


                                          Foto do Blog do Antônio Morais

 ERA ASSIM O MEU PEDAÇO DE CHÃO ( I )

Os seis primeiros anos de minha vida, vivi-os na zona rural. A casa ficava na beirada leste do sítio Varas, vizinhança do Coité, de onde divisávamos a Serra dos Cavalos em toda a sua espontânea candura.. O sol e a lua despontavam lá. Da serra desciam bichos estranhos, cascatas furiosas e rochas desgovernadas. Certa vez rolou uma pedra descomunal. Produziu um estrondo pavoroso, rasgou a mata e gravou no chão as cicatrizes que ainda podemos ver.
Da serra desciam seus alegóricos moradores, em cortejos animados, nos dias de feiras ou de casamentos. Entre. rosários de coco catolé, pitomba, araçá, macaúba, beijús de mandioca e ervas medicinais, os serranos tinham sempre o que vender. A passagem daquelas singulares caravanas pelas estradas da minha infância despertava curiosidade e sedimentava em minha consciência de menino impressões indeléveis.
Cresci meio rude como é natural. Porque rudes eram todas as coisas que se criavam distantes das cidades. Até a solidariedade era rude. Lembro do primeiro “adjunto” que vi acontecer no Coité.
Manhãzinha, sol ainda raiando, meu avô já de pé a comandar serviços que não eram de rotina. Mulheres na cozinha, homens no quintal e um porco já morto sobre a pedra usada como quaradouro de roupa.. Era o começo de um dia diferente. Intenso e proveitoso.. No terreiro iam chegando moradores da vizinhança e até de mais longe, munidos de quicés (facas pequenas). Assemelhavam-se a um batalhão de voluntários treinado para uma missão de paz.
Sob comando do patrocinador, rumavam com passadas firmes, em direção ao destino antes determinado. Era junho e as lavouras de arroz doiravam os vales e perfumavam os ares. A marcha dos voluntários parava justamente numa roça de arroz. Ali passariam o dia de quicé em punho cortando arroz. O corte manual era lento e requeria habilidade. Havia comida à vontade, mas a tarefa não era fácil. De pé em pé, de cacho em cacho e marchando em eitos, os trabalhadores não podiam demonstrar fraqueza..
Na hora do almoço, chegava, na roça mesmo, comida para todo mundo. Arroz, feijão-com-pão, batata doce, carne de porco, galinha, rapadura e água. Eis o cardápio. Pratos de barro, cabaças e cuias compunham a baixela sertaneja. Sem descanso, logo retornavam, pois a tarefa deveria encerrar-se antes das 5 horas. O arroz cortado ficava espalhado em moquecas. A última etapa do serviço consistia na juntada das moquecas que eram arrumadas em altas pilhas (potes), capazes de resistir ao sol e às chuvas.
Missão concluída. De volta à casa grande era servido o arroz-doce, ponto alto daquela festança. . No final, todos se retiravam para suas casas. Cansados, porém satisfeitos. Muito trabalho, muita conversa, muita alegria e tudo de graça. Lá na minha infância a este gesto de cooperação e solidariedade, os matutos chamavam de “adjunto”. Naquele tempo seria desonroso negar-se a participar de um “adjunto”.
VÁRZEA ALEGRE, 20 DE SETEMBRO DE 2021


Casa do autor Tibúrcio Bezerra, no sítio Varas

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